Estado de Minas F ui a Manaus, trabalhar. É uma longa viagem, com longas esperas em aeroporto. Mas comigo ia Francisco. “Francisco de As...
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Sou uma leitora caótica. Salto de livros que o meu desejo escolhe ou que me caem nas mãos, para livros que meu fazer me impõe, tentando em vão preencher uma lacuna de desconhecimento que cresce a olhos vistos. Nesse zigue zague, estranhos cruzamentos acontecem.
Cheguei de Manaus, fui a Sapiranga, perto de Porto Alegre. Uma viagem nem tão longa, mas com longas esperas. Dessa vez ia comigo Nietzsche, “Além do bem e do mal”, que comprei junto com o jornal ao chegar no aeroporto.
Minha cabeça ainda cheia da modéstia do frade de Assis esbarrou no duro muro do filósofo do poder. Abria-se o leque do pensamento humano, dois opostos se defrontavam sem jamais terem se encontrado.
Francisco, só perguntas: ”Quem sois, meu amado Deus, e que sou eu senão Vosso inútil servo?”
Nietzsche transbordando certezas: ”Um filósofo: eis um homem que constantemente vivencia, enxerga, escuta, suspeita, espera, sonha coisas extraordinárias”.
“E os que vieram deram tudo o que tinham aos pobres e contentaram-se com uma túnica, remendada por dentro e por fora, com uma corda e calções. Nada mais desejamos... Éramos simples e subordinados a todos.” recordou Francisco a respeito da chegada dos primeiros irmãos.
Desde o início, com um pedaço de giz havia marcado nas costas da sua túnica um grande T. A letra tau, que para sempre seria seu símbolo, significando seu serviço aos pobres.
“...deve-se pedir-lhes satisfações e levar a julgamento impiedosamente os sentimentos de abnegação, de sacrifício pelo próximo, toda a moral da autorrenúncia.(...) Há encanto e açúcar demais nesses sentimentos do ‘para outros’...”clama Nietzsche.
Diz o alemão: ”Todo homem seleto busca instintivamente seu castelo e seu recolhimento, onde ele esteja a salvo da massa, da multidão (... ) toda companhia é má companhia, exceto a de nossos iguais.”
O pequeno Francisco – media apenas um metro e sessenta- quis que sua irmandade não tivesse casa permanente, no máximo uma choupana onde faziam as refeições no chão e dormiam sobre sacos de palha. Aceitava toda classe de pessoas. De dia trabalhavam com os camponeses ou cuidavam dos leprosos, no fim da tarde iam pregar nas praças de Assis. Nomearam-se Irmãos Menores.
Nietzsche desprezava o martírio, Francisco o buscou indo ao Egito com os cruzados, numa tentativa de converter para a paz o sultão al-Malik al-Kamil.
Nietzsche era um estudioso e se refere constantemente aos doutos, Francisco acreditava que estudos fossem desnecessários para a verdadeira piedade. Diz Nietzsche :”A alma nobre tem reverência por si mesma”. Diz Francisco:”Deus não poderia ter escolhido ninguém menos qualificado, e mais pecador do que eu”.
Ambos morreram em sofrimento. Nietzsche, sem a razão e paralisado pela sífilis. Francisco, vitimado por malária, lepra e tracoma contraídos ao cuidar dos pobres. Mas foi antes de morrer, o corpo coberto de chagas, que o frade de Assis compôs a canção para Irmão Sol e Irmã Lua que seus olhos cegos já não conseguiam ver.