Marina Manda Lembranças S em saber que está viajando, mas prevendo essa possibilidade, mando um mail a um amigo perguntando aonde ele an...
Marina Manda Lembranças
Uma casa de dois andares frente a um campo de berinjelas, meu futon no chão, dois terremotos sacudindo de leve a insônia da primeira noite. Era pontual o jet lag, às duas horas da manhã me abria os olhos, e os deixava abertos até a primeira claridade, permitindo-me pensar no silêncio. Mas durou pouco.
Além da porta de papel de arroz dormia Nozomi, a filha caçula, embaixo, na sala das sete esteiras, dormiam Tamie San com o marido, e num quarto ao lado, Grandmother. De repente, eu fazia parte de uma família japonesa, e o faria por 15 dias.
Se procurar nas caixas em que desordenadamente guardo fotografias, aquelas de papel brilhante de que continuo gostando tanto, encontrarei meu retrato diante da estátua do Grande Buda, em Kamakura. Não preciso buscar a foto para rever-me de pé, debaixo do guarda-chuva aberto, vestindo uma calça xadrez preto e branco que não sei como me atrevi a escolher, sorrindo como qualquer turista. Era 1988, e eu estava no Japão a trabalho, encarregada de contar para uma revista a vida domestica de uma família japonesa ou, mais amplamente, de olhar ao redor e dizer o que via.
Não aparece na foto porque estava atrás da câmara, meu anjo da guarda daqueles dias, a mineira Jane Pinto. Morava em Tóquio. Generosa e alegre me levou para visitar templos e florestas, me explicou cidade e gentes, me acolheu em sua casa. Juntas, em Nikko, tomamos sopa de udon ( um macarrão chatinho nadando em caldo) para combater o frio. Chovia, e a neblina envolvia o templo de Toshogu, o mais belo entre tantos que vi, “ a beleza dos entalhes rivaliza com a riqueza da policromia – anotei em um caderno- nada é deixado ao acaso, todo centímetro é trabalhado. Como numa orquestra sinfônica, cada voluta, cada pássaro, cada flor esculpida se integra ao resto em absoluta harmonia”. Depois, atravessamos uma floresta centenária, subimos uma longa escadaria de pedra entre altíssimos troncos, para chegar ao sepulcro do terceiro shogun Tokugawa, guardado por um pássaro de bronze. A chuva gotejava.
Havia tanto a aprender. A não cruzar as pernas no metrô ou no trem, se estivesse de saia. A tomar banho esfregando-se com a mesma toalha com que ao fim, espremida, tira-se o excesso de água, deixando o resto secar no corpo. A sentar, na sala, sobre as pernas dobradas, receando a gangrena. A tirar os sapatos ao entrar em casa (isso a gente não esquece), a calçar chinelos para entrar no reservado, e descalçá-los ao sair ( isso a gente sempre esquece). A preparar o paladar, e não desconfiar de comidas que parecem estranhas. A sentir-se olhada como um ser exótico. A sentir-se segura em qualquer situação.
E tanto com que se surpreender. Japoneses não esbarram, nem na mais apinhada multidão. Japoneses não usam “chinelos japoneses” e muito menos tipo havaianas, se tanto, usam nos festivais sandálias de palha trançada. A cor favorita da indumentária japonesa é branco-e-preto. Japoneses têm prazer em ajudar e, se apenas vêm um estrangeiro de mapa na mão, se oferecem para a operação socorro. Japoneses dormem na primeira oportunidade, na condução, na espera em escritórios ou consultórios. Os estudantes japoneses, de pé na condução, fazem origami. Fora da Yakuza, não há crimes no Japão.
Mas ao longo dessas duas semanas todas feitas de aprendizado, o que mais me comoveu foi vivenciar o sentido da expressão “amabilidade pura”.
Não aparece na foto porque estava atrás da câmara, meu anjo da guarda daqueles dias, a mineira Jane Pinto. Morava em Tóquio. Generosa e alegre me levou para visitar templos e florestas, me explicou cidade e gentes, me acolheu em sua casa. Juntas, em Nikko, tomamos sopa de udon ( um macarrão chatinho nadando em caldo) para combater o frio. Chovia, e a neblina envolvia o templo de Toshogu, o mais belo entre tantos que vi, “ a beleza dos entalhes rivaliza com a riqueza da policromia – anotei em um caderno- nada é deixado ao acaso, todo centímetro é trabalhado. Como numa orquestra sinfônica, cada voluta, cada pássaro, cada flor esculpida se integra ao resto em absoluta harmonia”. Depois, atravessamos uma floresta centenária, subimos uma longa escadaria de pedra entre altíssimos troncos, para chegar ao sepulcro do terceiro shogun Tokugawa, guardado por um pássaro de bronze. A chuva gotejava.
Havia tanto a aprender. A não cruzar as pernas no metrô ou no trem, se estivesse de saia. A tomar banho esfregando-se com a mesma toalha com que ao fim, espremida, tira-se o excesso de água, deixando o resto secar no corpo. A sentar, na sala, sobre as pernas dobradas, receando a gangrena. A tirar os sapatos ao entrar em casa (isso a gente não esquece), a calçar chinelos para entrar no reservado, e descalçá-los ao sair ( isso a gente sempre esquece). A preparar o paladar, e não desconfiar de comidas que parecem estranhas. A sentir-se olhada como um ser exótico. A sentir-se segura em qualquer situação.
E tanto com que se surpreender. Japoneses não esbarram, nem na mais apinhada multidão. Japoneses não usam “chinelos japoneses” e muito menos tipo havaianas, se tanto, usam nos festivais sandálias de palha trançada. A cor favorita da indumentária japonesa é branco-e-preto. Japoneses têm prazer em ajudar e, se apenas vêm um estrangeiro de mapa na mão, se oferecem para a operação socorro. Japoneses dormem na primeira oportunidade, na condução, na espera em escritórios ou consultórios. Os estudantes japoneses, de pé na condução, fazem origami. Fora da Yakuza, não há crimes no Japão.
Mas ao longo dessas duas semanas todas feitas de aprendizado, o que mais me comoveu foi vivenciar o sentido da expressão “amabilidade pura”.