Introdução Africana de nascimento, italiana de origem e brasileira por escolha, Marina Colasanti reflete, em cada palavra dêste s...
Introdução
Africana de nascimento, italiana de origem e brasileira por escolha, Marina Colasanti reflete, em cada palavra dêste seu livro, a complexidade de uma formação intelectual quase absurda; - viagens forçadas em meio a uma guerra que ela ainda nem entendia, estudos em duas línguas e duas pátrias, moradia em palácios e apartamentos mesquinhos, o contraste profundo do ambiente quase sinistro de um atelier de gravura com as luzes brilhantes e levianas de uma passarela de modas, uma vida introspectiva e solitária misturada à euforia gregária dos verões juvenis do Arpoador. Sua visão do mundo é dela só, mais desesperada e aflita do que jamais foi pôsto em livro, numa personificação assustadora do isolamento definitivo do ser humano. Através destas páginas, que se afastam da autobiografia apenas no sentido de que não pretendem contar a história de uma vida mas somente transmitir a marca de uma solidão, há uma mulher jovem que caminha só, que viaja só, que trabalha só, mesmo quando há ao lado a ilusão dolorosa de outras proximidades, a sensação pérfida do afago fugídio. Em tudo a frustração constante do que fica enquanto vamos ou do que morre enquanto teimamos em existir. Insensivelmente o carinho e atenção maiores da escritora se voltam para coisas materiais e seres irracionais, como quem busca neles a perpetuidade e a fidelidade perdidas para sempre nas inconstantes relações humanas. Nestas páginas, inúmeras vezes, uma pedra, uma planta, um animal, serão merecidamente trazidos ao primeiro plano por uma sensibilidade pungente que reflete sobre seres e coisas humanas num tom sem ira mas cheio de queixa, na visão eclesiástica que impõe o aumento da dor com o aumento do conhecimento e pede, em sofrimentos constantes, um preço extremamente alto para as menores ambições de nossas almas. Sem aparente intenção, Eu Sozinha é um livro de extrema revolta contra o próprio Destino Humano, para o qual não há fuga senão a da estupidez e a da insensibilidade. Os pobres de espírito poderão não herdar o reino dos céus mas deles é, certamente, a paz da terra. Para os que, porém, por orgulho e insensatez, tentaram fugir às suas rígidas condições animais, de seres passivos nas guerras de um enredo incompreensível, o castigo é sempre o mesmo e aqui está melhor expresso do que jamais.
Eu Sozinha é um livro clássico em sua simplicidade, onde quase não há artifícios de linguagem, onde o predicado segue a ação e a ação segue humildemente o sujeito da frase: - nesta altura do ser humano não há o que esconder em frases dúbias ou retorcidas. É a deliberada e total singeleza de uma sinceridade que não pode ser calada, uma profundidade da qual não se volta, uma visão total da vida tão densa e tão precária, tão dorida e verdadeira que só nos permite, angustiados, ao contrário de tantos outros prefaciadores - este é um livro que eu não gostaria de ter escrito.
Millôr Fernandes na introdução do livro "Eu Sozinha" (Gráfica Record Editora)