Marina Manda Lembranças S emana passada, a Unicef divulgou os números: mais de 700 milhões das mulheres que vivem atualmente no mundo f...
Marina Manda Lembranças
Sempre soubemos que em muitos países meninas são obrigadas a se casar com homens que não escolheram, ou porque da mesma família, ou porque da mesma etnia, ou porque donos de camelos ou cabras, ou simplesmente para livrar a família do peso da sua alimentação. Mas uma coisa é saber por alto, como uma dado antropológico ao qual estamos acostumados, outra coisa é deparar-se com 700 milhões.
Se os 1000 palestinos mortos em Gaza no atual conflito nos destroçam a alma, o que fazemos com 700 milhões de meninas ou adolescentes mortas em vida?
Não se trata da quebra de um padrão romântico, casar sem estar apaixonada. Longe disso. Trata-se de ser dada em escravidão ao sair da infância, entregue a um macho para uso domestico e sexual incontido, ao longo de toda a vida. Sem que tenha cometido crime algum, sem que tenha infringido nenhuma lei, aquela que ainda ontem era criança se vê condenada por seus próprios pais, e a condenação é perpétua.
Olho o mapa da tragédia. Na Etiópia, ao lado da minha Eritréia natal e que na infância considerava um país irmão, 58% das mulheres que hoje têm entre 20 e 49 anos foram casadas, sem escolha, antes dos 18 anos. E na Eritréia, onde desejei voltar em busca das minhas raízes e não pude, 80% a 90% das mulheres entre 15 e 49 anos foram submetidas a ablação clitoriana.
Condenadas cirurgicamente a não ter prazer, essas mulheres o são duplamente, casadas com homens que não tem nenhum interesse em partilhar a alegria do sexo. Para elas, a sexualidade só pode ser vivida através de duas dores: a da penetração prematura e indesejada, e a dos partos.
Vi nos últimos tempos vários filmes que tratam de casamentos arranjados. Mais de um focava famílias indianas dos Estados Unidos em busca de parceiros matrimoniais para seus filhos, na Índia, com resultados desastrosos. Outro era sobre uma família argelina na França, querendo casar a filha com um rapaz em Argel. Um quarto passava-se na área da Palestina. Mas a maioria tratava o tema em tom irônico, e em todos eles negociavam-se jovens mulheres, nunca meninas.
Para mil meninos que nascem na Índia, nascem somente 918 meninas. Não é a natureza que privilegia os homens. São as famílias que fazem a triagem, abortando as meninas, consideradas um peso econômico pois não trabalham e precisam de um dote para casar. As famílias que abortam meninas não pensam que se todos fizerem o mesmo, seus preciosos filhos homens não terão com quem casar, e ninguém, de um lado e do outro, terá descendência. E a Índia é parte do BRICS, pertence ao nosso mesmo bloco econômico merecedor do respeito das nações.
Eu, mulher, recebo esses dados como uma agressão pessoal. Por que, me pergunto, por que a sociedade, essa sociedade moldada pelo homens não gosta de nós? Por que não nos quer e não nos respeita?
Conheço as respostas, é claro, estudei meu latim. E nada disso é novo, muito pelo contrário. Lembro que nos tempos do feminismo mais intenso, quando essas situações eram questionadas opunha-se toda uma conversa politicamente correta, de autonomia dos povos, ancestralidade, respeito à cultura alheia. Hoje, em tempos de globalidade, quero que essa falsa correção política se dane, e que o mundo defenda as meninas, defenda as mulheres. Não só que as defenda, mas que as aconchegue e lhes queira bem.