Marina Manda Lembranças M inha amiga me diz que vai à Croácia. Não é a primeira, vários amigos meus tem ido para lá. Pode ser uma moda t...
Marina Manda Lembranças
Quando a Croácia era Iugoslávia e eu era criança, me foi dito que do outro lado do mar, aquele mar manso e claro da praia onde passávamos o verão, estava a Iugoslávia. Até então, o Adriático havia sido para mim um mar imenso como o dos argonautas, terminando, se tanto, nas colunas de Hércules. Mas a partir do momento em que me revelaram o outro lado, uma margem surgiu no meu imaginário represando aquela água e marcando seus limites. O mar havia-se tornado quase um rio.
E me disseram mais, que os barcos de pesca, que com suas velas coloridas vaziam-se ao largo ao entardecer para aproveitar o vento, chegavam, noite alta, tão perto da outra costa, que conseguiam ver suas luzes. As luzes da Iugoslávia.
À noite eu dormia. Mas quantas vezes, de manhã, sobretudo nas manhãs em que beirando o outono a praia fazia-se mais vazia, procurei no horizonte tentando ver a terra onde meu pai havia sido soldado.
Soldado apenas, não, "legionário louro". Assim se refere a ele o poeta D'Annunzio em carta ao meu avô, escrita bem depois de ter conquistado a cidade de Fiume, à frente de uma expedição irredentista. Meu pai tinha 17 anos, e fugiu de casa escondido da mãe para viver essa aventura heróica, que mais tarde me contaria com o mesmo entusiasmo juvenil e a mesma alegria com que a havia vivido. A carta do poeta está guardada comigo, sobrevivente, heróica ela também, de tantas mudanças.
A Croácia entraria mais uma vez em minha vida. Eu já era profissional tarimbada quando, em 99 traduzi o livro de Fulvio Tomizza intitulado "Franziska" . A partir da história de uma menina nascida nas primeiras horas do primeiro dia do século XX e, por decreto, afilhada do imperador austríaco Francisco José, o autor conta a história de Trieste.
Trieste estava — e está, porque não mudou de lugar — na costura de Croácia, Eslovenia e Itália. E estava também em uma canção que foi o hit de um verão da minha infância, "Pino Solitário". Decidia-se naquele ano de 47 a disputa pela cidade, entre Iugoslávia e Itália, e durante todo o verão, temerosos de perdê-la, os italianos cantaram a música nostálgica que evoca a famosa igreja triestina de San Giusto.
Trieste foi dividida ao tempo da canção. E só muitos anos mais tarde se tornaria definitivamente italiana.
Fiume é atualmente a terceira cidade mais importante da Croácia, e o principal porto do país. Não creio que barcos de pesca vindos do lado oposto com suas velas coloridas atraquem no porto em meio aos cargueiros. Não creio sequer que ainda existam barcos de pesca daquele tipo na pequena cidade de Porto San Giorgio em que passei tantos verões.
Dependendo da nacionalidade dos turistas, a cidade é chamada Fiume ou Rijeka, em italiano ou em croata. Mas o significado é o mesmo, aquele que lhe deram os romanos quando, ao tempo do imperador Augusto, reorganizaram o assentamento celta existente à beira do rio e o nomearam Fiumem.
Meus amigos vão à Croácia. Eu nunca fui. Mas a Croácia veio até mim, no tempo em que se chamava Iugoslávia.