Marina Manda Lembranças C aro Salmão, escrevo para oferecer-lhe minhas desculpas, embora sabendo que não as receberá. Você era uma pei...
Marina Manda Lembranças
Comer sua carne era então um privilégio, e de privilégio tinha o preço. E porque era tão bom e porque era tão caro, resolveu-se que mais cômodo e mais rentável seria criá-lo em cativeiro. Ontem comi sua outrora nobre carne, fatiada em sashimi. Parecia um mármore mole, toda rajada de gordura. E a cor, a bela cor de coral que era dada pela alimentação à base de crustáceos, deve-se agora a corantes administrados junto com a ração e os antibióticos. Acabou, para você, a desafiadora subida rio acima, saltando para vencer a correnteza e escapar dos ursos. Não há correnteza nos viveiros, só uma multidão de semelhantes sobrenadando sem meta, à espera da morte.
Amada Galinha, sei bem que não é do seu feitio frequentar a internet, não podendo, portanto, ler essas linhas com que tento diminuir minha culpa. Ainda assim, a gratidão me impele a dizer-lhe o quanto sempre gostei dos seus ovos. Criança ainda, catei-os mornos, tateando no ninho que você acabava de deixar. Era uma apropriação indébita, bem sei. Mas escarvando com a pata em busca de algo para ciscar, você nunca me olhou com reprovação. Eu fazia um furinho de um lado, um furinho do outro e mamava com gula de raposa.
Esses ovos, entretanto, pertencem ao passado. Hoje não tateio ninhos, compro os ovos em caixas no supermercado, e posso escolher entre Ovos de Granja, Ovos Caipira, Ovos orgânicos e ovos de diversas marcas. A sua autoria, amada Galinha, foi encoberta. Você que era a única responsável por aquela maravilha da natureza, foi transformada em elo quase menor da corrente produtiva.
Vive agora em viveiros de tela, espécie de containers para seres vivos, muitas vezes superpostos e sempre superpovoados. Por vezes, as fezes dos habitantes de cima caem nos de baixo. Ah, sim, não tem que ciscar por comida, ela lhe chega pontual, com todos os aditivos que permitirão depois classificar seu produto. Mas não creio que cante alegre como cantava antes ao acabar de expelir o ovo, e certamente sabe que nenhum deles será seu para o choco.
Prezado Bode, receba meus respeitos e meu pedido de perdão, embora nunca tenha sido consumidora da sua carne, nem apreciadora de buxada. Admirava, porém , sua tenacidade, sua determinação em viver mesmo com pouquíssima água e com tão pouco de comer. Sempre o considerei um elegante, ser que vive na pobreza sem deixar-se humilhar. Aconteceu, porém, que eu fosse a Mossoró e, no caminho, parasse para o almoço em grande churrascaria.
Naquela terra, pareceu-me um dever pedir churrasco de bode. Que maravilha de maciez e sabor chegou-me ao prato! Regalei-me. Passada a sobremesa, comentei minha surpresa com o garçom, não esperava fosse carne de bode tão delicada. Ao que ele me respondeu que era bode só no cardápio, no prato vinha cordeiro do Uruguay. Você, meu caro, com seu longo passado, sua tradição bíblica, está sendo traído em nome do turismo.
Amada Galinha, sei bem que não é do seu feitio frequentar a internet, não podendo, portanto, ler essas linhas com que tento diminuir minha culpa. Ainda assim, a gratidão me impele a dizer-lhe o quanto sempre gostei dos seus ovos. Criança ainda, catei-os mornos, tateando no ninho que você acabava de deixar. Era uma apropriação indébita, bem sei. Mas escarvando com a pata em busca de algo para ciscar, você nunca me olhou com reprovação. Eu fazia um furinho de um lado, um furinho do outro e mamava com gula de raposa.
Esses ovos, entretanto, pertencem ao passado. Hoje não tateio ninhos, compro os ovos em caixas no supermercado, e posso escolher entre Ovos de Granja, Ovos Caipira, Ovos orgânicos e ovos de diversas marcas. A sua autoria, amada Galinha, foi encoberta. Você que era a única responsável por aquela maravilha da natureza, foi transformada em elo quase menor da corrente produtiva.
Vive agora em viveiros de tela, espécie de containers para seres vivos, muitas vezes superpostos e sempre superpovoados. Por vezes, as fezes dos habitantes de cima caem nos de baixo. Ah, sim, não tem que ciscar por comida, ela lhe chega pontual, com todos os aditivos que permitirão depois classificar seu produto. Mas não creio que cante alegre como cantava antes ao acabar de expelir o ovo, e certamente sabe que nenhum deles será seu para o choco.
Prezado Bode, receba meus respeitos e meu pedido de perdão, embora nunca tenha sido consumidora da sua carne, nem apreciadora de buxada. Admirava, porém , sua tenacidade, sua determinação em viver mesmo com pouquíssima água e com tão pouco de comer. Sempre o considerei um elegante, ser que vive na pobreza sem deixar-se humilhar. Aconteceu, porém, que eu fosse a Mossoró e, no caminho, parasse para o almoço em grande churrascaria.
Naquela terra, pareceu-me um dever pedir churrasco de bode. Que maravilha de maciez e sabor chegou-me ao prato! Regalei-me. Passada a sobremesa, comentei minha surpresa com o garçom, não esperava fosse carne de bode tão delicada. Ao que ele me respondeu que era bode só no cardápio, no prato vinha cordeiro do Uruguay. Você, meu caro, com seu longo passado, sua tradição bíblica, está sendo traído em nome do turismo.