9 Um dia, as flores entraram em minha vida. Não lembro bem como foi, sei que, antes, só existiam os oleandros. Flores das férias, cre...
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Um dia, as flores entraram em minha vida. Não lembro bem como foi, sei que, antes, só existiam os oleandros. Flores das férias, cresciam por toda parte, na cidadezinha onde passávamos o verão, nas praças, nos jardins, ao longo das ruas, e na estação de trem. Seus galhos lisos e flexíveis pareciam cobertos de couro, pele de bicho, as folhas eram pontas agressivas. Mas as flores, brancas, rosa e vermelhas, desabrochavam em profusão, quase em cachos, e, sob o sol, enchiam o ar de um perfume intenso que ficou sendo para mim, desde então, o cheiro do verão. Quando lançadas do alto, as pétalas distribuídas em hélice faziam girar a flor, e eu ficava horas acocorada sobre a pilastra do portão, jogando os pequenos cataventos no ar, para vê-los descer rodopiando. Eram estas as únicas flores que eu via, as outras me ficaram desapercebidas durante muitos anos, sem que me detivesse para olha-las.
Morei em apartamentos, em casas com jardim, em sítios. Até que, um dia, vi as azaleias. Foi só porque chamaram minha atenção para elas, mas talvez justamente por causa desse impacto - as azaleias formavam naquele momento blocos enormes sobre o gramado - que eu passei a reparar.
Porque, depois, conheci as glicínias. Desciam de algum lugar, provavelmente uma varanda; apesar de trepadeiras, as glicínias sempre me deram a impressão de que descem ao invés de subir. Eu as via delicadas, com um leve mel - bom de sugar, - nos pistilos e só muito mais tarde, já adulta e vulnerável aos lugares comuns, liguei sua imagem ao Japão. Havia também os lilazes. Estes não tinham nada de delicado, apesar do aspecto espumejante; os galhinhos secos e duros que prendiam os cachos quebravam num estalo, sem lascas, como ossos, e as folhas luzídias não tinham linfa.
Surpreendi as violetas no aparecer, quando apenas a folha redonda anunciava, sobre a grama, a próxima mancha de cor. Ajoelhada, o rosto bem próximo, espiei seu botão,e , com as mãos em concha tentei abafar a luz, na esperança de que o miolo dourado brilhasse no escuro, flor-vagalume. Disseram-me que as margaridinhas selvagens enrubeciam de puro recato; sem acreditar nisso, passei, entretanto, a lhes atribuir dores especiais de sensibilidade. O ciclame me assustava, lembrando com seu perfume intenso os lugares úmidos e escuros em que nasce. Sempre liguei à magnólia a ideia de flor carnívora.
Quando soube que das flores nasciam os frutos me enchi de espanto diante da primavera. Cada flor uma maçã, cada flor uma pera, e tantas flores que os galhos, quando tudo estivesse pronto, vergariam sob o peso, e não haveria árvore capaz de suportar tal abundância. Desde então, os galhos floridos das árvores frutíferas, postos em jarras, se me afiguram como imperdoável sacrifício.
E havia o campo. Em meio ao trigo, na trilha estreita feita pela sabedoria antiga de muitos passos, eu parava para olhar. As papoulas eram asas de borboletas, não deviam ser tocadas; se eu lhes soubesse a linguagem, os talos, tentáculos peludos, obedeceriam ao meu chamado. As hastes de trigo protegiam os miosótis. As pétalas douradas dos ranúnculos brilhavam somente pelo lado de dentro, na suprema vaidade de uma alma espelhada. E por vê-los sempre tão próximos, coloquei também na categoria das flores os pequenos pássaros que fazem ninho junto ao chão.
Sobre a extensão de neve, descobri um dia um "fura-neve". Nunca outra flor me encheu de tanto respeito.
Não existiam, em minha visão de infância, flores tropicais. Quando cheguei ao Brasil já era crescida demais para, com a surpresa, renovar o encantamento. E imagino, triste, o quanto perdi.
Crônica número 9 do livro "Eu Sozinha" - página 39 (1968)