Marina Manda Lembranças E le estava montado na moto, com o torso ligeiramente virado. Ou talvez estivesse encostado nela. A moto rep...
Marina Manda Lembranças
Beijava uma moça intensamente.
Ela era baixinha e toda clara, clara a roupa, bem clara a pele. E estava nua.
Não propriamente nua, mas como se fosse. As pernas despidas até a beira do short luziam na penumbra deitada pela copa da árvore, os braços eram asas de cisne, e trazia decote e cintura à mostra. Tudo se destacava em pura delicadeza contra o corpo escuro dele.
Beijava e se deixava beijar intensamente.
Quem passasse por ali e reparasse, veria apenas um motoqueiro e uma adolescente empenhados em cena corriqueira de desejo.
Mas eles compunham naquele momento uma perfeita gravura de Gustave Doré, eram o centauro e a ninfa entrelaçados, casal mitológico caído do Olimpo em plena modernidade. Ele, corpo e máquina unidos, com aquela estranha cabeça metálica e cintilante. Ela, fragilidade colhida no abraço, pronta à entrega.
Minha imaginação substituiu a parede do prédio por um rochedo — há sempre rochedos nas gravuras de Doré, sejam ilustrações da Divina Comédia ou do Gato de Botas — e trocou o gentil tronco da amendoeira por um tronco vetusto de carvalho. Ao alto, coloquei nuvens densas, cumulus nimbus espumantes de ameaça, pois os deuses precisam de anteparo para continuarem invisíveis enquanto espiam as suas criaturas que se beijam.
Andando, já no outro quarteirão, colhi essa imagem com cuidado, como fosse asa de borboleta que qualquer toque fere, e a guardei.
O abraço que vi, pouco depois se desfez, o rapaz partiu na sua moto exibindo o ronco do escapamento aberto, a moça deve estar vestindo hoje outra roupa, talvez camiseta amarela porque é domingo quando escrevo e muitos foram à passeata em Copacabana. Não há nuvens nem rochedo naquela rua, as amendoeiras crescem nas calçadas para alegria dos cães que são levados a passear.
Mas no arquivo de Doré que minha memória guarda, habita agora mais uma gravura, aquela do lânguido abraço com que, à sombra de um carvalho, o centauro envolve sua ninfa. Se alguém tivesse capacidade de bisbilhotar no meu cérebro, como saberia que essa é a única que nunca existiu?
Uma imagem de vida - não de celular - dura poucos segundos, é o tempo em que nosso olhar se pousa sobre ela e ou a fixa, ou a descarta. Os personagem da imagem, os que a constroem, não a possuem porque não a vêm, estão aprisionados dentro dela. Ela pertence à visão alheia, a única que tem distanciamento. E a visão alheia não fez voto nenhum de fidelidade. Pousa na cena e a arrebata, como o condor à ovelha, e mesmo que a devore está livre para desfazer-se dos seus restos.
Se o motoqueiro ou a moça pudessem olhar no meu arquivo e se vissem centauro e ninfa, certamente teriam ímpetos de protestar. Mas não teriam esse direito. A cena que eles viveram é deles, e será sempre como eles a quiserem lembrar. A que eu colhi e conservo obedece a outra realidade, que só a mim pertence.