Eu devia começar citando uma crônica de Marina Colasanti para que o leitor entrasse logo no ritmo e não perdesse o tempo que se perde le...
Eu devia começar citando uma crônica de Marina Colasanti para que o leitor entrasse logo no ritmo e não perdesse o tempo que se perde lendo um prefácio. Porque o conteúdo e a linguagem destas crônicas são algo de muito especial. Por vezes eles são mesmo surpreendentes e possuem uma audácia de expressão que não é comum num gênero por sua natureza destinado ao grande público.
A crônica no Brasil seguiu uma trajetória peculiar. De gênero menor, incidental, ou de registro mais ou menos sócio-recreativo, ela se tornou repentinamente um gênero muito importante, em que um pesquisador estrangeiro chegou a ver o melhor da nossa literatura contemporânea. Entrou nos colégios como texto de leitura e entrou nas editoras como livro de vendagem fácil. Sobretudo, produziu autores. E pelo menos um deles, Rubem Braga, um grande autor e autor quase exclusivamente de crônicas. Existe o caso singular do cronista Drummond, que disputa com êxito uma faixa de público a que o poeta Carlos Drummond de Andrade nem sempre chega.
Como todos os impérios, a crônica no Brasil teve sua ascensão, apogeu e decadência. Faz algum tempo, um amigo me confidenciou que certo cronista não tivera aquela explosão que todos esperavam de seu talento. A observação me impressionou, porque nós, os críticos, sempre dizemos coisas assim a respeito de romancistas, contistas ou poetas, mas nunca de cronistas. Sempre encaramos a crônica, mesmo a literária (da chamada crônica mundana nem cogitamos), como um gênero fugaz, altamente perecível ou, para empregar uma expressão ambígua, de alta rotatividade. Pode alguém realizar-se plenamente na crônica? É uma observação engraçada. Porque, pensando bem, o cronista vive de sua crônica e não esta do cronista. Um romancista chato, um poeta ilegível, um contista intragável e até um crítico do óbvio continuam para todos os efeitos um romancista, um poeta, um contista, um crítico. Mas nenhum cronista resiste ao próprio desgaste de sua falta de assunto, de interesse, de graça ou de estilo. E quando se submete ao teste final de passar para o livro essas páginas, o que se tem é um mingau insípido. Há quem escreva crônicas através dos anos com a maior perseverança sem que ninguém se lembra de chamá-lo de cronista e escritores, bons noutras áreas, que na crônica nos parecem perdidos.
Como encontrar o tom, a forma pessoal, o mundo próprio? Como delimitar esse território que até os pássaros conhecem tão bem? Que dizer a um público invisível sem parecer que estamos de pires na mão?
Marina Colasanti encontrou a resposta, não de uma vez só, mas lentamente, pelo exercício da coragem. Resolveu aceitar o desafio do cotidiano, que em nosso dias é o desafio da agressão. Estar presente é ser cúmplice, dizia-me Jones Rocha. Marina Colasanti não tem medo de estar presente, mas não é cúmplice coisa nenhuma. Sabe resguardar-se por trás de uma lucidez irônica, faz de suas fraquezas força, ela me lembra certos animais do deserto que se defendem enfrentando o inimigo desigual. Decora os slogans, anota as situações limite, assenhoreia-se das palavras de passe do grupo, mas na hora de ver um beija flor em seu apartamento vê mesmo, um real e maravilhoso beija flor vivo, nada de colibri, pelo amor de Deus. É uma lição que ela aprendeu com James Thurber: temos o direito de ver o nosso unicórnio em paz.
Outra de suas armas é a ternura, uma ternura profundamente solidária para com este mundo e essa gente sem pé nem cabeça. Disse uma vez Robert Musil que todos nós temos uma segunda pátria, onde tudo que fazemos é inocente. O dia a dia absurdo da grande cidade e o mais absurdo ainda mundo telegráfico (Marina trabalha em um grande jornal) procuram poluir - já que a palavra é poluir - a nossa solidariedade. Socorrer o homem baleado, a moça que chora, o menino entra a esmola e o assalto, a odiosa falsa caridade que nos deixa uma dupla culpa, os implacáveis espiões da sociedade de consumo que entram pela casa adentro para nos empurrar o supérfluo, o bombardeio errado que mata 500 sem que ninguém fale no bombardeio certo que matou 500 mil, esse universo absurdo é o mesmo em que um leão se acasala com uma tigresa e em que nasce Alessandra - na mais bela página desse livro.
Marina tem razão. Vivemos numa floresta. O difícil é sair dela. Os caminhos do sonho e da fuga, os caminhos da segunda pátria, permanecem abertos. "Sou compulsiva, eu sei, mas no fim de um dia de trabalho, quando sento no terraço à procura do céu, encontro uma paz e um vento que não havia na cristaleira, a plenitude de um brilho, quem sabe, o brilho distante de Aldebarã".
Fausto Cunha