Por sobre os altos muros da dor estendo a mão à minha filha buscando-a para o começo. Bate sua cabecinha forçando a passagem enquanto me...
Por sobre os altos muros da dor estendo a mão à minha filha buscando-a para o começo. Bate sua cabecinha forçando a passagem enquanto meu corpo lhe cede aos poucos o direito de evadir-se. Bate seu tempo em mim rasgando a divisão. E somos duas, e somos uma, trancadas na cidadela da primeira luta.
Imóvel, deixo o corpo flutuar sobre as arestas, ferindo-se apenas no fluxo da maré, sem debater-se. Deixo que vá e volte, sentindo que avança a cada onda. E espero a próxima que, sei, virá mais forte.
Chega de longe, pressentida tão antes de chegar. Do pé, da sola do pé, das raízes que o pé planta no ventre do passado, profundo útero de tantas mães. Vem de dentro de mim, e anula tudo o que se passa fora.
É por isso que fecho os olhos, para evitar o mundo externo em que posso me perder. A ansiedade no rosto de quem me ama, a luz, as cores, tudo ameça minha dedicação, tudo me distrai do centro. Se desviar o pensamento da minha tarefa terei medo, quererei fugir, e me afogarei no próximo fluxo.
Vai o corpo nos círculos da dor, entregue à serpente que me esmaga os quadris e por instantes me abandona, feroz e lerda. Vai o corpo entregar sua carne a outra carne que a devora. Sem sangue, sangramos em segredo.
Quantas horas? 10 horas. Quanto falta? muitas horas. Quanto tempo, numa hora?
No mundo sem relógios puxo a mãozinha molhada através de corredores escuros. Não tenha medo, querida, mamãe está qui. Vamos juntas. A luz está longe, mas conheço o caminho. Não há pressa. A tua força é a minha força, e eu toda só existo agora para te guiar.
Bate a cabeça derrocando minhas paredes mais sólidas. Macia avança no percurso macio, e tudo é aço.
A veia bebe o açúcar do soro, branco sangue de garrafa. E eu vou e volto sem sair do lugar. Estive tão longe, demorei?Não conheço onde fui, mas era tão distante que quase me perdi, e te deixei sozinha. Desculpe, querida, já voltei.
É longo o trabalho para ela, tão pequena. Cansativo para mim, que preciso ainda de toda a minha força. Mas as mãos unidas por sobre os muros, por entre o que resta dos muros, se afagam e se puxam. E imperiosa, me chega a ordem de expulsá-la.
Quanto falta? Falta pouco. Vamos te levar. A hora está chegando.
A hora, querida, a hora é você. Vão nos levar, ouviu? Vão nos levar para te receber, com toda a pompa.
Luz no corredor, rostos recortados contra o teto que anda ao passo da minha maca. Portas, vozes, ordens.
Me ajuda, querida, agora é você quem tem que me guiar, a luz é tua. Vem, estou te dando tudo o que tenho e não sei se tenho mais. Vem, depressa. Você que é tão mais forte do que eu, me leva para a luz.
Aço e fogo, ferro e sangue. Corre a água, o peixe salta. É ela à minha frente, suspensa e branca no primeiro brilho do choro. É ela, liberta de todos os muros. Oh! querida, que bom te ver, que bom estar contigo, que bom, que bom, meu amor, que você enfim chegou.
29-10-72