Marina Manda Lembranças E la havia ido nos esperar no posto de chegada dos vôos da Panair, na praça Marechal Âncora. O Galeão era ape...
Marina Manda Lembranças
Uma vez atracada a lancha, desembarcamos numa construção arredondada, moderna, com muito vidro. Falo do que lembro, menina de dez anos chegando a um novo país depois de tantas horas de vôo. Havia araras, disso tenho certeza, e algum verde. As pessoas falavam uma língua que eu não entendia. E lá estava ela, imponente e toda sorrisos, minha tia-avó Gabriella Besanzoni Lage.
Elas eram duas. Soube depois que haviam vindo juntas, Gabriella e sua irmã Adriana. Uma se vestia de vermelho, um tecido com luas e pequenas estrelas estampadas. A outra usava um vestido do mesmo tecido, mas verde. Eram roupas de verão, e nós havíamos saído de Roma ainda no frio. As duas usavam brincos de ouro. "Quem é a nossa tia?"perguntei a meu irmão como se ele pudesse saber. E ficamos os dois, passarinhos desplumados um na proteção do outro, à espera.
Enquanto nosso pai liberava malas e passaportes, foi decidido que iríamos para casa no carro com a tia. A casa era Villa Gabriella, hoje conhecida como Parque Lage.
Um carro longo, preto — todos os carros eram pretos, e alguns eram longos — o motorista de dolman e boné, nós dois atrás, espremidos entre as duas irmãs. Atravessamos o centro da cidade, imagino que tenhamos passado por Botafogo e Humaitá, rumo ao Jardim Botânico. E em algum momento cruzamos com alguma demolição. Crianças educadas, íamos mudos até então, porém, diante da ruína do que havia sido uma casa, em que alguns homens se atarefavam a golpes de marreta, um de nós disse :"Aqui também houve bombardeios?" O tom era puramente casual, de reconhecimento, até que enfim algo íntimo, mas as duas tias se entreolharam comovidas — lembro o olhar — e certamente pensaram"pobres crianças!".
As pobres crianças finalmente chegaram em casa. Era hora de almoço. Há quanto tempo eu não comia? Havíamos embarcado em Roma ao fim da tarde no Costellation de delicado azul turquesa por dentro e quatro hélices por fora, rumo a Lisboa, depois a Dakar, depois a Recife, e só lá adiante, passada uma noite, um dia e outra noite de vôo, o Rio. Eu havia começado a enjoar em Lisboa.
A mesa da sala de jantar era longa, imensa. A família grande quase quanto a mesa, sentada de um lado e outro, conversando, alegre. Nós dois, pequenos, tontos de cansaço, de sono, de estranheza. E chegou o mamão, servido na travessa de prata como entrada. Ninguém sabe o quanto pode ser horrível o mamão quando não se o conhece e se espera que seja melão. Mas comi assim mesmo. E a tia, vendo que eu comia, perguntou se estava gostando. E eu, polida e querendo agradar , disse que sim. Pelo que, foi me servida outra fatia.
Era o ano de 1948.