Marina Manda Lembranças D evo ter cruzado com a Primavera no aeroporto, mas não a vi. Sei que em Paris tudo esperava por ela, as árvo...
Marina Manda Lembranças
Nesse outono ainda frio, a silhueta dos parisienses é facilmente descrita: um retângulo encorpado encimado por um pequeno volume, e duas listas finas saindo dele até o chão. Tudo igualmente escuro, preto ou azul marinho. São os casacos acolchoados que descem até as coxas, engolindo metade da cabeça no capuz debruado de pelo, muitas vezes engrossados pelas mochilas. E as pernas, as magras pernas francesas metidas em calças justas ou em collants, como as da renascença italiana, finalizando em botas ou botinhas da mesma cor, de modo a que tudo pareça uma única coisa.
Silhuetas todas iguais, rostos todos diferentes. De tantos taxis que tomamos, nenhum era dirigido por alguém com antepassados gauleses. O mundo inteiro transita em Paris, uma parte até mora lá. Nesses dias, estava cheio de italianos, e todos os dias tem-se a impressão de que uma parte do Oriente mudou de lugar no mapa. Antes, quando o yen era moeda fortíssima, todos os de olho puxado eram, para nós ocidentais, japoneses. Agora não hesitamos, são chineses.
Os chineses, aliás, estão comprando metade da França. Não me refiro a bolsas Vuitton ou a roupas de marca e perfumes. Isso também eles estão comprando. Mas seu interesse maior está focado em outro tipo de produto, aquele que rende. Já compraram peças chave da rede hoteleira, e não apenas em Paris, mas também na Normandia e na Provença. Compraram grupos, conglomerados, nomes emblemáticos de lojas de departamentos, cassinos. Enfim, há uma transferência de capital em curso, bem mais importante - e menos visível- que a afluência turística.
Todos, em Paris, querem ver a exposição de Pierre Bonnard e muitos o conseguem, apesar das filas. É uma mega exposição deste pintor de quem costumamos ver poucos quadros em cada museu, em geral eclipsados pelos numerosos, e mais conhecidos, impressionistas. Na atual exposição do museu d'Orsay, estão quadros representativos de todas as suas fases, e até mesmo minúsculas fotografias, pois Bonnard era fotógrafo apaixonado.
Grandes planos de cor viva, muita luz, cenas domésticas cotidianas, ramagens, e muitas, muitas cenas de toucador e de banheiro, muitas cenas de banho. É um pintor de estética decorativa, agradável, quase jocoso por vezes.
No entanto, uma outra realidade se esconde atrás dessas cores de sol. As banheiras, os nus mergulhados em água, os espelhos refletindo azulejos não são casuais, nem, certamente, uma escolha puramente estética. Martha, a mulher que durante muitos anos foi sua modelo e amante e com a qual acabou se casando, sofria de doença mental e, tendo sido submetida a um tratamento hidroterápico, passava grande parte dos seus dias submersa na banheira.
Nem a alegria tomava outros caminhos na vida de Bonnard. No dia em que ele se casou com Martha, sua amante também estável - Martha e a amante aparecem juntas ao ar livre em uma das minúsculas fotos - suicidou-se.
A história de Martha não está contada nos painéis da exposição. Os quadros resultam mais leves.
Martha, fotografia de Pierre Bonnard. Fotografia tirada entre 1867-1947. Fonte |