Marina Manda Lembranças O lhei pela janela, e não havia nem um carro. Eram duas horas da madrugada, havia chovido. Do alto do décimo an...
Marina Manda Lembranças
Uma noite, em Frankfurt, também fiquei de pé atrás de uma janela de hotel, olhando a noite. Fazia frio lá fora. Nenhuma luz nos prédios, apenas a iluminação dramática e bem calculada de uma fachada e cúpula, certamente uma igreja. Talvez tivesse chovido. Não havia ninguém na rua, só dois ou três carros passaram a longos intervalos na avenida distante. Mas da janela eu via um belíssimo rosto de mulher e um homem de peito nu revezando-se num daqueles suportes publicitários em que uma imagem sobe fazendo a outra aparecer em seu lugar. Exibiam-se ali como se fossem eles próprios o produto, sem ninguém para vê-los. E ali ficariam sozinhos até o amanhecer, quando a primeira luz da manhã mudaria os reflexos do vidro que os continha.
Como os humanos, que trocam de roupa para sair à noite, também as cidades mudam seus trajes e seus sons ao chegar da madrugada. Não dormem, como dormimos nós. Ao contrário, aproveitam nossa ausência para viverem sua própria vida. Durante o dia, cheias de carros, buzinas, acender de sinais, gente nas calçadas, gente atravessando ruas, gente entrando e saindo de milhões de portas, subindo e descendo em tantos elevadores, as cidades são um espaço invadido, contaminado pela nossa pressa e pelos nossos cheiros, pela nossa tensão e pelos nossos relógios, um espaço frenético correndo mesmo se parado. Só à noite, como um cão que sacode suas pulgas, se livram de nós e podem retomar sua busca de sintonia com o espaço que a amanta. Recuperam o silêncio que tinham antes de serem cidades, as luzes se fazem estáticas como as estrelas, o vento leva folhas pelas calçadas desimpedidas. E nada tem pressa, porque tudo obedece a um tempo maior.
Em Roma, quando ainda jovem eu viajava para visitar minha avó, os barulhos tantos de turistas, de comerciantes, de transeuntes que de dia escorriam compactos como um rio na rua antiga e estreita debaixo da minha janela desapareciam à noite, dando lugar a uma ou outra rara voz, um chamado, uma risada, que pontuavam os longos espaços de silêncio e que, em vez de escorrer, subiam verticais como o balão que escapa da mão da criança. Eu me refestelava então sob as cobertas, feliz por estar ainda acordada e recolher a diferença.
Em Poços de Caldas, quando na manhã seguinte comentei a ausência de carros que havia me seduzido de madrugada, meu interlocutor deu um monte de justificativas, que segunda-feira à noite ninguém sai, que estava muito frio, que brasileiro tem pavor de chuva. Parecia que o fato de não haver carros, em vez de benção, fosse uma vergonha. Eu sorri em silêncio, sem acatar nenhum daqueles argumentos, embora verdadeiros. Preferi guardar para mim a visão da longa avenida vazia lavada de chuva, e agradecer à insônia que me havia permitido vê-la.