Marina Manda Lembranças D esenhado a mão. Bastaria isso para me seduzir. Durante oito anos, cada frame do longa "O conto da pr...
Marina Manda Lembranças
Nessa história, um homem do campo vai ao bosque cortar bambus, e dentro de um bambu encontra uma menina pequena, bem pequena, que cabe na palma da sua mão. É no Japão, mas que tão familiar resulta essa cena. Meu imaginário de infância está cheio de lenhadores que vão ao bosque, de velhinhas que carregam feixes de gravetos, e de meninas mágicas achadas em couves, em flores, em ninhos. A criança achada é um presente geralmente dado a um casal sem filhos, mas traz consigo um destino bem diferente daquele que os pais poderiam lhe dar. Desse destino se fará o conto.
Tudo neste filme dialoga com a natureza. A música que a princesa Kaguya canta e que sabia antes mesmo de saber cantar, fala de insetos, do ruído dos grilos, das aves. E insetos saltam em quadro a qualquer hora deslizam sobre o talo das flores, voam com suas mínimas asas. Leio no livro de Lévi-Strauss, "A outra face da Lua, escritos sobre o Japão", que um neurologista japonês, Tsunoda Tadanobu, demonstrou que os japoneses utilizam o lado esquerdo do cérebro para processar os sons emitidos pelos insetos, ao contrário de todos os outros povos — asiáticos incluídos —, que utilizam o direito. Segundo Tadanobu isso significa que, para eles, as vozes dos insetos não são recebidas como ruídos, mas pertencem à ordem da linguagem articulada. É certamente o que motiva o príncipe Genji, no livro "a História de Genji " que venho lendo lentamente há anos, para mandar buscar insetos em terras distantes a fim de que sejam soltos no seu jardim e ele possa deleitar-se com o canto.
Vi com ternura, desenhada no filme, uma casa igual àquela em que entrei no Museu das Casas, em localidade próxima de Tóquio. É um museu diferente de todos, terreno imenso como uma fazenda mantido com seu aspecto natural, em que surgem casas de diversas épocas, trazidas de diversas partes do Japão. Distantes umas das outras, isoladas em meio ao capim alto e aos arbustos, são completas por dentro, com os utensílios da vida doméstica, as esteiras, as sandálias de palha gastas e os quimonos rústicos metidos numa vara de bambu para secar junto ao fogo. É atravessar o umbral, e ingressar em outro mundo, em outro tempo.
O filme de Isao Takahata também nos leva para outro mundo. Não apenas aquele em que pequenas princesas são achadas dentro de bambus, mas aquele em que todo um longa metragem é desenhado a mão, desprezando o acabamento edulcorado do computador e mantendo viva a antiga tradição japonesa da caligrafia e das estampas.
Estamos em julho. Na minha montanha é o tempo em que florescem as cerejeiras trazidas do Japão como presente para a prefeitura de Friburgo e multiplicadas ao longo dos anos. O meu caseiro já telefonou, avisando que nas do nosso jardim não há uma única folha, só pétalas. Sei que ao seu redor voam os beija-flores e se agitam besouros e abelhas, enquanto pontos leves e rosados como asas caem para pousar-se no gramado. Devo tomar o carro e subir para, como o príncipe Genji, deitar-me à sombra das cerejeiras em flor e ouvir o canto dos insetos.
Imagens: Estúdio Ghibli |