Marina Manda Lembranças F ui ao teatro. Coisa boa é prepara-se para assistir a uma peça de qualidade e não ser desapontado. Boa e ...
Marina Manda Lembranças
O público ri, como disse Antonio Fagundes em entrevista “dá boas gargalhadas”. A intenção é essa, trata-se de uma “comédia perversa”. Eu não consegui dar um sorriso. Não por falha dos atores, Fagundes e Bruno à frente, nem da excelente direção de Ulysses Cruz. Sentia claramente que algumas frases, algumas situações queriam me levar ao riso, mas o que havia por trás das palavras o impedia, era pura tragédia.
Muitos já sabem qual a estrutura da peça, não estou incorrendo em spoiler. Temos uma família disfuncional vivendo sua cotidiana disfunção em várias cenas. Um pai autocentrado e autoritário que se quer intelectual e está aprendendo chinês, uma mãe medianamente submissa que está escrevendo um livro medíocre, uma filha quase da mesma idade da mãe que se ilude de ser cantora cantando na igreja, um filho esquizofrênico que ouve vozes, e um filho surdo que não ouve nada.
Os filhos não saem de casa, embora o pai viva repetindo o quanto gostaria que se fossem. Todos se agridem em voz alta, esquecidos da surdez de Billy. Ele não ouve mas lê os lábios, a linguagem dos sinais não lhe foi ensinada em família , para que — justamente — ele não pertencesse a outra tribo.
Tudo muda quando Billy conhece e se apaixona por uma moça surda que lhe ensina esse meio de comunicação.
É uma peça sobre nossa surdez coletiva, a incomunicabilidade gerada pela incapacidade de prestar atenção, de “ouvir” o outro. Um tema ótimo, muito atual, que a todos diz respeito.
Mas os ficcionistas têm um defeito, ouvem uma história e logo deslizam, acrescentam, modificam, começam a construir sua própria história. E eu me vi saindo do teatro, caraminholando com o que eu faria com aquela família disfuncional.
Eu a levaria pelo mesmo caminho até Billy se apaixonar e sair de casa. Mas usaria a surdez de Billy apenas como pretexto para escancarar o funcionamento daquela família que, só aparentemente, não funciona.
Billy sai de casa, e isso não agrava somente a esquizofrenia do irmão maior que precisa da deficiência dele para equilibrar a sua. A saída de um dos elementos desmonta a estrutura do todo, pois ali cada peça se encaixa na outra com a precisão de um quebra-cabeça. O pai precisa dos filhos incompetentes e da mulher submissa, para exercer sua prepotência. A mãe precisa da filha que não consegue levar adiante seu canto, para escorar sua falta de talento como escritora. O irmão mais velho precisa da voz sempre excessiva do pai, como contraponto às vozes que ouve na cabeça. Todos precisam da submissão carinhosa e protetora da mãe. E os três irmãos podem se agredir sem risco, jogando um no outro sua própria frustração, num pingue pongue que praticam desde a infância e que os liga.
A saída de Billy levaria ao desmoronamento da família, e ele acabaria voltando, não apenas por amor, mas atraído por aquele grupo humano que só se articula em conjunto, formando um todo.
O defeito do ficcionista, que “reescreve” o trabalho alheio, tem também uma vantagem. Eu cheguei em casa tendo assistido não uma, mas duas peças: uma sobre a “surdez” social e a incomunicabilidade, outra, oposta, sobre a comunicação secreta que liga, como uma amálgama, as pessoas de uma mesma família.