Marina Manda Lembranças J oaquim Archivaldo Guzmán "El Chapo" fugiu da prisão de El Altiplano. Que era de segurança máxima...
Marina Manda Lembranças
Fugas deste tipo costumam ter um cunho heróico, tanto mais heróico quanto mais arriscadas. Pouco importa que sejam quase sempre praticadas por criminosos. Na hora de por o plano em marcha, o condenado se metamorfoseia no nosso imaginário, passa a ser apenas o ser humano lutando por sua liberdade, o justiceiro solitário enfrentando o mundo. Talvez entre nessa costura um conteúdo simbólico, fugir da prisão significando escapar da inevitabilidade da morte.
Grande foi o meu entusiasmo, na infância, pela fuga de Edmond Dantes, o herói de "O Conde de Monte Cristo". O Chateau d' If, de onde ele se evade de forma espetacular, era a versão século dezenove de uma prisão de segurança máxima, era a Alcatraz do seu tempo. Tenho guardada em algum canto a foto que meu pai fez de mim em Marseille, diante do cartaz que, no caís do porto, anuncia os horários dos barcos para a ilha de If. Eu já tinha 19 anos, mas não quis ir, preferi guardar na lembrança a prisão imaginada, em vez de substituí-la pela realidade turística.
Nada de suportes logísticos, equipe de engenharia, estruturas modernas, nada de túneis para Dantes. Quando seu companheiro de cela, o abade Faria, morre, Edmond troca de roupa com ele, se deita em seu lugar e fazendo-se de morto se deixa trancar em um saco e atirar ao mar. O saco era bem amarrado, se não me engano havia um peso, o mar espumava ao redor dos rochedos. Finalmente livre depois de 14 anos, Edmond emerge como um Poseidon.
Agora os tempos são outros. Escavar o chão da cela com a colher que se surrupiou no jantar tornou-se coisa para ladrão de galinhas. El Chapo é um profissional do mais alto nível, um especialista em túneis . Já fez 62 atravessando a fronteira dos Estados Unidos, além de uma verdadeira rede interlingando as dezenas de casas em que vivia, e há anos contratou uma equipe internacional para cuidar disso. Calcula-se que o túnel por onde agora escapou tenha sido escavado durante um ano, em absoluto silêncio, com acabamento de primeira e meio de transporte interno, quase uma sala Vip. Nem ele abandonou a área dos chuveiros através de um buraco. A foto da procuradora-geral Arely Gómez examinando o local deixa claro que se trata uma abertura retangular perfeita e ampla, para que ele não tivesse que se espremer ou sequer se sujar.
O único esforço pessoal exigindo do escapante foi a descida da escada de 10 metros. Abaixo, a moto o recolheu, e ele foi levado por baixo da terra até o barracão da casa longínqua onde um banho o esperava, e duas mudas de roupa estavam à disposição, para sua escolha. Os guardas do presídio, benévolos, só desconfiaram da sua demora na área do chuveiro três horas depois dele ter pisado no primeiro degrau da escada. No barracão houve ainda tempo para uma água de colônia. A champagne ficaria para depois.
Nenhum herói nessa fuga. O herói foi substituído pelo CEO ao comando da grande organização, onde se espera que tudo funcione de maneira mais que perfeita, para obter perfeitíssimos resultados. El Chapo não sujou as mãos e nem mesmo os sapatos. Deu as ordens e esperou que fossem cumpridas. O erro era hipótese não admitida.