Marina Manda Lembranças T odos tatuados, em "A Regra do Jogo". Não é difícil prever uma corrida às lojas de tatuadores, em b...
Marina Manda Lembranças
Tento entender a atual febre das tatuagens como algo mais do que apenas moda. Encontro uma explicação no livro sobre a vida de Marie Curie ("L'idée ridicule de ne plus jamais te revoir" — a idéia ridícula de nunca mais te ver), da escritora espanhola Rosa Montero. Fazendo um paralelo entre corpo e alma, Rosa fala dos milênios de disciplina, de cilícios e flagelações, de jejuns, bulimias, anorexias, de intervenções estéticas selvagens como os pés deformados das chinesas ou as operações plásticas de Michel Jackson e diz compreender a atração exercida por alguma delas. "Por exemplo, o prazer que produzem as tatuagens: é viciante. Mandei tatuar uma salamandra no braço direito há doze anos, e tive que me conter para não ir correndo fazer outra tatuagem qualquer no dia seguinte. Devo dizer que a sensação é maravilhosa, um alívio e uma plenitude irracionais, como se, com aquele rabisco de tinta sob a pele, tivéssemos conseguido vencer por uma vez o grande inimigo, humilhar esse corpo tirânico que nos humilha, um corpo que não escolhemos e de que somos obrigados a cuidar durante toda a vida, esse corpo que nos encerra e que acaba por nos matar, esse corpo safado e traidor que de repente fica manco e dá um basta em nosso prazer de subir montanhas. Ou que faz crescer insidiosamente, no silêncio das células, um tumor maligno que vai nos torturar antes de nos assassinar."
Rosa faz da tatuagem uma forma estética de vingança, uma intervenção para mostrar ao corpo quem realmente manda. Entretanto, o jovem soldado que vi recentemente, com uma imagem de Jesus Cristo tatuada no peito e uma granada tatuada no costado, não estava se impondo a seu próprio corpo, e sim mandando um claro recado a quem o olhasse: sou cristão, mas disposto a explodir o que me provocar.
Nem querem "humilhar o corpo que nos humilha" os jovens musculadíssimos, depiladíssimos, que exibem corpo e tatuagens como bandeira.
Sempre, quando vejo pessoas muito tatuadas, penso na aflição de nunca mais poder se despir. Um braço todo tatuado está de manga, e impossibilitado de trocar a estampa.
Andava eu outro dia em Ipanema, quando me surpreendi com um cartaz pequeno colado a um muro: "Procura-se tatuagem na nuca". Pensando fosse alguma mensagem com vezo artístico, me aproximei para ler. Era somente um anúncio para um documentário ou filmagem, com e-mail ao pé. No dia seguinte, quando tornei a passar, havia sido arrancado. Durou bem menos que uma tatuagem.
Rosa vê a tatuagem como forma de humilhar o corpo. Eu a penso como uma maneira de torná-lo visível, pespegar-lhe uma identificação, quase um crachá. Na aldeia ou na pequena cidade cada um tem o seu papel, a sua função, e são eles que o identificam. João é o padeiro, Joana a parteira, todos conhecem. Na metrópole, as identidades se esbatem e se sobrepõem, os habitantes se tornam massa em movimento na qual todos se desconhecem. E quanto mais nos confundem na massa, mais necessidade temos de destacar-nos dela.
Um rapaz magro, com uma enorme cruz tatuada nas costas, e um sagrado coração quase apoiado na beira do calção. Havia muitas outras pessoas ao redor da piscina naquela manhã. Mas o único de que lembro é aquele rapaz magro quase crucificado em seu próprio corpo.