Marina Manda Lembranças A lmocei uma estupenda fritada de abobrinha e espinafre. Você não está interessado no meu almoço? Mas não é ...
Marina Manda Lembranças
Abri os ovos alegremente na tigela porque são gostosos e saudáveis, e porque é uma proteína que posso comer sem ter que matar ninguém. Isso, pelo menos, é o que eu pensava até depois da fritada, porque na tarde daquele mesmo dia li alguma coisa que me fez repensar: uma reportagem sobre o destino anual de 50 milhões de criaturas vivas.
Inocentes, comemos nossos ovinhos fritos, sem desconfiar do que viram 39 deputados e senadores franceses confrontados com um espetáculo atroz filmado com câmara oculta. Era o registro do sistema utilizado com a mais absoluta indiferença pela indústria avícola para dar conta dos pintinhos machos, considerados inúteis já que não põem ovos. Feita a triagem e separadas as fêmeas, os pequenos machos são jogados vivos em sacos plásticos e moídos por uma máquina.
Penso em Pinóquio quando, ao partir o ovo que seria sua única refeição naquele dia, surpreende-se vendo sair dele um pintinho, que agradece a ajuda, manda lembranças para Geppetto, e sai voando pela janela. Talvez fosse um pintinho macho escapando à sinistra dualidade, ser moído ou virar galeto.
Os 39 deputados e senadores estão agora exigindo do Ministro da Agricultura da França que a moagem de pintinhos seja abolida. Seria possível fazer a triagem de forma indolor, quando ainda no estágio do ovo.
Não faz muito, vendiam-se pintinhos na feira. Mais do que como animais de estimação, eram comprados como uma espécie de brinquedo vivo para as crianças. Poucos sobreviviam. Criados na área de serviço, aspirantes a galo, encontravam o caminho da panela antes disso. Ao pequeno proprietário dizia-se que havia fugido, mas servia-se a carne.
Dizemos pintos, no masculino, como se só machos fosse gerados nos ovos. Pinta, designa apenas a mancha na pele. As galinhas, porém, não são adultas de pintos, são pintas crescidas. E não tenho muita certeza de que seu destino seja melhor do que o de seus filhos machos.
Tento não pensar nisso quando como fritadas, mas sabemos que as poedeiras vivem em condições infames, engaioladas em super lotação, privadas propositadamente de sono, estressadas. Sem nunca ciscar, nunca comer uma minhoca ou sequer conhecer sua progénese. Poedeiras não chocam, não abrigam pintinhos sob as asas. É provável que passem a vida sem nunca te visto um pintinho, talvez sem saber que é para isso que existem ovos.
E o que será que acontece com as poedeiras quando já não põem ovos? Ninguém fala em menopausa de galinha, mas imagino que, como para toda fêmea, haja um fim para sua capacidade reprodutiva. Nesse ponto, certamente estão duras demais para serem comidas – aliás, tudo o que hoje chega ao prato é frango, foi-se o tempo do caldo de galinha. O que, então, é feito delas? Caldo Knorr?
Ainda no início da década de 50, no Rio, as galinhas eram vendidas vivas. Havia lojas só para isso, passava-se em frente e era aquela inhaca. As mulheres iam pela rua carregando sua presa viva, de patas amarradas para fazer uma espécie de alça e cabeça quase encostando na calçada. Levavam o troféu com a mesma indiferença com que hoje carregam sacolas de supermercado, ou talvez com um secreto orgulho de caçador bem sucedido. Havia depois a cena do morticínio, faca cortando pescoço, sangue recolhido na tigela e respingando nos azulejos brancos da cozinha. Felizmente, a vida me poupou dessa cena, mas não da sua narrativa, que até hoje se repete em qualquer roda se apenas se toca no assunto.
Criança, catei ovos mornos no ninho. E os comi crus, fazendo um furinho em cada ponta. Quando conto isso, as pessoas acham nojento, franzem a cara. Mas era bonito e honesto, uma relação direta com a fonte da vida, uma convivência feita de uso, mas não despida de afeto.