Marina Manda Lembranças N a semana passada falei de uma barata em quarto de hotel. Retomo o assunto porque me trouxe à lembrança ...
Marina Manda Lembranças
Em agosto de 91, Affonso - então Presidente da Biblioteca Nacional- e eu havíamos ido a Moscou, para um congresso internacional de bibliotecários. De forma totalmente inesperada, participaríamos daqueles dias em que a tentativa de golpe contra Gorbachev levou à queda do regime comunista. O que quero contar hoje, porém, nada tem de revolucionário.
Chegar a Moscou naquela época já era uma emoção em si. Que para nós, leitores de tantas obras primas da literatura russa, fundia política e arte, passado e presente, mesclando as camadas e solicitando olhar atento.
Estávamos hospedados no Hotel Intourist. Procuro agora na internet e não o encontro, pode ter trocado de nome. Mas era, então, o hotel mais elegante da cidade, na rua mais central, a 500 metros do Kremlin e da Praça Vermelha. O conceito de elegante, já se sabe, varia ao sabor de vários fatores.
Nosso quarto era mínimo, e não havia, no banheiro, uma única toalha casada com outra. Eram toalhas pequenas, muito baratas, algumas coloridas, outras desbotadas. Parecia surpreendente, sem ser grave.
Outras coisas nos surpreenderam. Entrava-se no Hotel por uma escadaria grandiosa, testemunho de dias melhores. Havia um hall imponente ladeado pelo hall dos elevadores, e um grande bar com um espaço envidraçado, como um pátio interno. Detalho esses espaços arquitetônicos para poder seguir com a conversa. A qualquer hora, via-se uma pequena população de mulheres semi paradas na escadaria, que deduzimos fossem as profissionais. Eram, mas havia outras. Pois cedo percebemos que as mulheres que conversavam no hall, e que acreditávamos fossem hóspedes, também eram profissionais. E também as do hall dos elevadores. Nossa surpresa foi maior ainda quando soubemos que as jovens belíssimas sempre presentes no bar, vestidas de grifes dos pés à cabeça, que estávamos certos fossem manequins ou atrizes estrangeiras, pertenciam, elas também, ao plantel erótico disponível. Tudo hierarquizado, o preço variando de acordo com o espaço.
Não só. Em certos corredores, onde essas moças trabalhadoras tinham quartos fixos, havia uma espécie de vigilante, mulher de forte corporatura e rosto pouco amigável, sentada à uma mínima mesinha de onde controlava e mantinha a ordem do entra e sai.
Éramos, de todo o congresso, os único hospedados no Intertourist, talvez como uma forma de deferência. Mas, desejando acabar com o isolamento e estar com os colegas, perguntamos que tal o hotel deles, e expressamos nosso desejo de mudar.
"Tem barata no quarto de vocês?" foi a resposta. Não, barata não tinha. "Então fiquem onde estão!!" No hotel dos outros congressistas, as baratas eram tantas que nossos amigos e amigas dormiam de luz acesa, com o rosto e o corpo inteiro coberto com o lençol preso por baixo da cabeça. As cascudas não davam a mínima para a luz.
Baratas não costumam ser fato isolado. Estavam invadindo os quartos por falta de alimento nas cozinhas, por falta de veneno nos ralos, pela falta generalizada que constatávamos nas vitrinas vazias, na filas de gente à caça de alguma compra possível.
Voltaríamos a pensar nelas noites depois, quando, na praça da KGB, vimos a estátua do seu fundador, Dzerjinski, sendo derrubada por guindastres da Krupp. Atrás, o enorme prédio da KGB guardava seus segredos em silêncio e escuridão. Pensamos que, como baratas, figuras humanas estariam se agitando atrás das janelas fechadas.
Mas isso está melhor contado no livro "Agosto 1991: estávamos em Moscou", que Affonso e eu escrevemos de parceria e que traz fotos nossas e do querido fotógrafo Sérgio Gilz.