A escritora Marina Colasanti nasceu num pequeno país no norte da África, chamado Eritreia, na época uma colônia italiana. Durante a ...
Aos 10 anos, chegou ao Rio de Janeiro com os pais e, a partir daí, fez do Brasil sua segunda pátria. Com mais de 50 obras publicadas, há quatro décadas Marina vem deixando sua marca na literatura brasileira. A sua produção é marcada pela diversidade: ficção infantil e juvenil, textos e ensaios jornalísticos, contos e minicontos para adultos, crônica, poesia e, mais recentemente, memória.
Ganhadora de dezenas de prêmios literários, entre eles sete Jabutis, ela definitivamente é uma mulher do seu tempo, e suas opiniões são dignas de nota e reflexão. Como filha da guerra, a escritora continua viajando para mil e um lugares. Mas agora não para fugir das bombas, mas para encontrar leitores. Que, felizmente, não são poucos. Confira trechos da entrevista exclusiva para o Correio do Estado feita durante o Festival Literário de Araxá (MG), que ocorreu entre os dias 26 e 30 de agosto.
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Mesmo com uma carreira tão consolidada, a senhora ainda tem incrível disposição para viajar pelo Brasil, frequentando festivais e feiras literárias?
Claro. Primeiro porque eu sou uma viajante. Se você me trancar numa cidade só fico pra morrer. Por questões biográficas, por tudo. Segundo porque no Brasil os livros viajam com você. O Brasil é um país de poucas livrarias. E sem isto, a distribuição dos livros fica problemática. Com este advento das feiras literárias, criou-se outra rede que leva os livros País afora. Agora, feiras de livros são iguais a shopping centers: cidade que não tem uma está por fora, é uma barbárie (risos). A gente viaja para formar leitores, fazer contato com o público, conversar com universitários.Em sua opinião, as pessoas estão gostando mais de ler?
Há muitos anos, estamos trabalhando para obter leitores e, agora, entrou um diferencial que é a internet, então muita gente diz que ela toma muito tempo dos meninos, que eles vivem colados nos aparelhos e não vão mais ler. Mas, na verdade, a internet, embora tome muito tempo e faz com que eles se acostumem com uma linguagem que evidentemente é precária – falar com emoticon é quase voltar às cavernas, né? –, há, porém, uma rede muito intensa de jovens leitores de sites literários, de blogs com críticas de literatura, intercâmbio de contos e poesia e há um amplo acesso aos clássicos. Todo patrimônio literário clássico está disponível gratuitamente. Isto é uma tremenda ajuda para o jovem que quer ler.Mas tem muita coisa competindo com estes sites literários.
Sim, principalmente para os adultos. Os mesmos pais que reclamam que os jovens não leem, se você for analisar, eles também não leem. Vivemos num País com classes muito flutuantes. A classe baixa ascende socialmente, mas não consome leitura, porque ela vem de um patamar em que ela não existe. Daí a sociedade de consumo querendo agradar estas classes que estão ascendendo, em vez de enfatizar a leitura, cria produtos de consumo, mais fáceis de serem consumidos, que não ajudam a elevar socialmente. São temas muito complexos porque envolvem sociologia, economia, tudo junto. A leitura não é isolada.Quando você editava a Revista Nova, publicação de vanguarda na época, você era considerada feminista. Você ainda é feminista?
Sou feminista até hoje. O feminismo pra mim é uma maneira de olhar o mundo, de se colocar no mundo. Eu não poderia me conceber intelectual, escritora — até porque eu não escrevo pra divertir nem distrair ninguém — se eu não refletisse sobre a minha colocação no mundo. E a minha colocação no mundo é de uma mulher. Que é diferente da colocação de um homem. Temos um amigo que diz: “As mulheres vêm de outro macaco”. Somos realmente “de outro macaco”. E o mundo está equalizado de tal maneira que até hoje as diferenças são enormes. E até hoje, quando há guerra, epidemia no mundo, as primeiras atacadas são as mulheres. Agora, por exemplo, no Cazaquistão, estão abortando as meninas. Não deixam nem nascer. Como ser uma mulher que quer pensar o mundo e não pensar nesta questão de base? Eu trabalhei numa revista durante 20 anos como editora de comportamento. Tinha que refletir sobre a questão, estudei muito sobre isto e isto não sai de você.Como se dá seu processo criativo?
Eu trabalho por projetos. Não é assim: “Ah! Estou aqui hoje e me veio uma ideia e quero escrever um conto, ou estou aqui nas Termas e me vêm um poema (risos)”. Eu determino: “Agora vou trabalhar num conto ou numa poesia”. Você tem que criar uma embocadura para apurar sua sensibilidade para aquele setor. Eu não uso os mesmos sensores para a poesia ou para a prosa, ou para contos para adultos, minicontos ou contos maravilhosos. São outros sensores.A sensibilidade fica ligada de outra maneira. Quando você vai escrever, liga um radar e fica atento, seu olhar circula e você vai colhendo elementos, coisas, toques. Esta colheita é feita de acordo com o gênero em que estou trabalhando, ela não acontece aleatoriamente. Eu crio um foco.
Você viaja sempre representando o Brasil como escritora, como você percebe tudo o que está acontecendo na política atual?
Vejo com grande inquietação. Vale dizer que melhor agora do que antes do escândalo, porque rolava e a gente não sabia. Melhor agora que os anos de cegueira, anos Lula, o desastre estava sendo armado e nós não sabíamos coisa nenhuma. Agora, temos uma política em suspense: não pode fazer marola, o País não pode ficar ingovernável. A política está uma tragédia, a economia da mesma forma e os valores todos confundidos. Porque, quando uma população inteira, ao menos majoritária, acredita numa coisa e é frustrada, castigada desta maneira na sua fé, na sua esperança, na sua devoção — porque havia uma devoção a este governo —, é uma facada na ideologia, na credibilidade.O resultado disso é que você passa a ouvir que todo político é ladrão, é assaltante. Isto é muito perigoso. Nós precisamos de políticos, temos que ter fé na política, senão como vamos viver? Na ditadura? Este capítulo é recente. Atenção, cuidado. Vai para o estado islâmico para ver como é.
Pode se dizer que você se sente desconfortável em relação ao Brasil?
Eu estou me sentindo morta de vergonha. Porque, a cada dia, se você abrir a sua bolsa, é capaz de você ver ali um ladrão, um lobista levando propina. Agora, estamos sabendo que existem 480 sindicatos que ganham fortunas no Brasil. Quem é esta gente? As propinas da Petrobras passavam por 34 operações econômicas até serem lavadas. Na minha casa, a roupa suja entra na máquina, sai e está limpa. É uma operação só. Que sujeira é esta que precisa de tanta lavagem para voltar limpa? Então, é a vergonha e esta sensação de sermos cegos, surdos e usarmos a voz equivocadamente. Porque nós não sabemos o que se passa nos bastidores do poder, da economia, das relações, das entidades. Agora estão em cima das ONGs. Há mais de 20 anos, fui a um jantar da Unesco e um sujeito graduado sentou-se ao meu lado e me disse que o próximo escândalo mundial seria das ONGs. Não aconteceu ainda. Estou sentada esperando, porque vai acontecer. Agora a investigação da Lava Jato vai se estender até elas. Ou seja, não sabemos nada, não temos alcance visual para ver nada e ainda assim damos opinião, esbravejamos, como estou fazendo aqui (risos). Olha o meu papel ridículo!Você, como grande leitora que é, poderia indicar três livros fundamentais para quem está começando a ler?
Não tenho a menor ideia. Os livros fundamentais não são aqueles que a gente considera fundamental. Cada livro conquista o leitor em um determinado momento e de uma forma, de uma maneira profunda e por razões que nem ele nem o autor jamais saberão explicar. E este momento, esta epifania, faz esse livro ser fundamental para esse leitor.Ninguém pode saber qual é este livro. Então como fazer leitores? Colocando muitos livros a sua disposição, para que ele vá descobrindo o que lhe agrada. Não adianta você dizer para um jovem que “Odisséia” é um livro maravilhoso, se ele acha uma chatice. Mas outro pode achar Ulisses maravilhoso. E este pode estar numa travessia que ele nem suspeita. Há leitores que já nascem leitores.
Entrevista de Theresa Hilcar, concedida em 15/09/2015