Marina Manda Lembranças V i uma for de jasmim deslocando-se solitária e ainda fresca no braço da poltrona de vime. Olhei mais atentamen...
Marina Manda Lembranças
Não havia outra formiga por perto, muito menos a fila exta em que as operárias costumam levar sua carga para o formigueiro. Esta fazia serviço solo e, sem a fila a guia-la, parecia hesitante sobre o caminho a seguir. Observei seu percurso.
Percorreu primeiro o braço da poltrona vencendo os obstáculos impostos pelo trançado do vime. Depois começou a descer. Não em linha reta. Descia traçando espirais irregulares, como quem desce um morro evitando o declive mais intenso. E , quando já lhe admirava a técnica, voltou-se e recomeçou a subir. A partir daí , pareceu ter perdido o caminho ou encontrar excessiva dificuldade naquele que escolhia. Ia e vinha, descia e tornava a subir, dava uma volta e retomava o mesmo rumo em que tinha vindo.
Deu-me pena. Tão pesada para ela aquela mínima flor, tão distante o chão que , visivelmente, tentava alcançar. Desejei ajudar. Peguei de um vaso de planta um talo de grama seco e, tentando ser discreta ao mesmo tempo em que era invasiva, o coloquei alguns milímetros à sua frente. Se nos entendêssemos, ela tomaria uma carona no talo, e eu a depositaria salva e sã no chão, com sua flor.
Fracasso da operação. Talvez sabendo que o oferecimento vinha de uma humana e conhecedora das artimanhas de que os humanos são capazes, a formiga recusou a passagem. Voltou-se em ângulo reto para o lado e recomeçou a sua função.
Pensei que talvez o talo não fosse convidativo, quem sabe, demasiado instável para criatura tão carregada. Esperei um pouco e, vendo que minha agora protegida não se acertava nem para cima nem para baixo, procurei uma folha confortável e a coloquei ao seu alcance. Não exerceu o menor efeito. Ou melhor, exerceu, oposto e desastroso. Assustada com a folha à sua frente, a formiga corcoveou, deixou cair sua carga, e ela própria foi ao chão.
Sentindo-me culpada, mas raciocinando que, afinal, a formiga havia chegado aonde pretendia, catei a flor e a pus a seu lado, que a levasse mais facilmente no plano. Mas o susto havia sido demais, contaminando o jasmim. Minha intromissão aniquilara a sua escolha, ela teria que recomeçar.
O ano está acabando. Fazemos hoje `a noite uma breve interrupção em que só a alegria é permitida. E amanhã retomamos nossa carga e seguimos caminho. Poucos de nós, é certo, carregam flores. A maioria vai mesmo de sacos de areia ou pedras. Muitos fazem serviço solo. Quando tentamos lembrar de mão desconhecida oferecendo talo ou folha, `as vezes lembramos de alguma, às vezes não, embora muitas tenham se estendido para colaborar nas pequenas coisas.
Amanhã, como a formiga, recomeçamos. Este ano que passou nos deixou à beira do abismo e, ao que tudo indica, no próximo não teremos superfície plana disponível. O vime à nossa frente é dos mais trançados, cheio de obstáculos. Não há fila organizada `a frente, nem temos plano B disponível. O único plano de que dispomos é o mesmo que sempre nos guia: agarrar a carga com firmeza, olhar adiante, e injetar no imaginário perfume de jasmim.