Marina Manda Lembranças C omo prometi na semana passada, vamos dar um passeio na obra de uma estupenda artista portuguesa. Se não a...
Marina Manda Lembranças
Chama-se Casa das Histórias o museu dedicado à sua obra, que visitei em Cascais. Não poderia ter outro nome. "Ando sempre à procura de novas histórias para o meu trabalho. - disse em entrevista Paula Rego - Podem vir da literatura, ou de Walt Disney ou de outro sítio qualquer. (... ) Começo sempre com uma ideia, uma história qualquer. Sempre foi assim o meu trabalho, mas perco sempre essa ideia original porque o trabalho acaba sempre por ser outra coisa, sugerir outra história - a história vai mudando. Vai-se à procura da história através do quadro."
Rego é, de fato, uma pintora narrativa. Diante dos seus quadros, alguns deles em série, é imediata a tentativa de leitura. A primeira que se faz é uma leitura social. Rego critica. As relações familiares, as hierarquias, o exercício do poder, a relação com os animais são seu alvo. E dominante é seu discurso sobre a mulher, sua posição social, os casamentos arranjados, a dominação, o aviltamento, o desejo, a sexualidade.
Mas algo mais nos é dito por aquelas personagens. Elas nos dizem de sentimentos perversos, da brutalidade humana, falam de inveja, de egoísmo e de hipocrisia. Há, na pintura de Rego um viés perturbador, por vezes semelhante ao que encontramos na obra de Balthus.
Essa pintora moderníssima trabalha com modelos vivos, na contramão de todas as correntes artísticas da modernidade. Não usa modelos profissionais, mas pessoas amigas às quais faz recurso várias vezes, para diversos quadros, e com quem discute as poses e o figurino. A intimidade com o modelo transfere-se de algum modo para a tela, e a vitalidade palpita.
E Rego desenha, desenha, desenha. Há vários de seus estudos preparatórios e de seus esboços na exposição "Caçadora Furtiva" , inaugurada no último dezembro na Casa das Histórias.
A exposição é relativa aos trabalhos que fez no ano de 1990, quando recebeu o convite para ser Artista Associada da National Gallery, de Londres. O convite consistia em passar 18 meses com ateliê montado na Gallery, para produção de uma obra capaz de traduzir o sentido da coleção.
O ateliê de Rego foi instalado em um subsolo. E ela conta que todos os dias emergia do atelier e ia colher beleza e histórias entre os 2000 quadros da coleção de mestres do século XIII até o século XX, para depois descer novamente à sua toca e devorar e processar em seu corpo, como uma "caçadora furtiva", tudo o que havia trazido. A obra com que atendeu ao desafio proposto pelo convite é "O jardim de Crivelli", quadro de 8 metros por 2, em que fundiu os clássicos azulejos portugueses com as referências aos mestres.
Sempre gostei da pintura de Paula Rego, desde quando a descobri, faz muitos anos, em uma livraria de Lisboa. O livro que comprei então chama-se "As botas do sargento", e é um conto escrito por Vasco Graça Moura a partir de quadros dela. Como em um círculo que se completa, ou que se amplia, os quadros nascidos a partir de histórias inspiraram, por sua vez, uma nova história.
Dessa pintora admirável procuro inutilmente as gravuras que fez ilustrando contos de fadas.