Marina Manda Lembranças F alando ao telefone no meu escritório levantei o olhar, vi que os retratos de Affonso que coabitam na mesma ...
Marina Manda Lembranças
Pousando o olhar na superfície branca do tampo da mesa, vi que sem me dar conta, havia esmagado uma minúscula formiga.
Agora as suas três ou quatro companheiras pareciam enlouquecidas, e talvez estivessem loucas de dor ou de espanto. Corriam em todas as direções, desatinadas, indo e voltando e, ora uma ora outra, parava junto àquele cadáver que era para mim apenas uma mínima poeira de formiga, mas que para elas era o corpo morto da companheira. Demoravam-se poucos segundos, talvez debruçadas sobre a outra, talvez cheirando ou tentando reanima-la, como saber, sendo elas tão pequenas?, e recomeçavam aquelas corridinhas.
Pareceu-me estar vendo Guernica, de Picasso, o desespero da guerra, os gritos mudos nas bocas escancaradas, as mãos hirtas, os olhos esbugalhados, os jorros de lágrimas. Estariam esbugalhados os olhos daquelas formigas?
Definitiva como a morte na guerra é a morte na paz.
Ajeitando uma moldura que poderia ter continuado do jeito que estava, matei um ser vivo. Um gesto dispensável, um olhar distraído, e eis que a mão se alonga sem saber o que provocará. O tamanho da vítima não diminui a intensidade do fato, teria sido o mesmo se tivesse matado um elefante, apenas me daria mais trabalho remover o corpo, e enfrentaria dificuldades com a sociedade protetora dos animais. Ninguém protege as formigas, ninguém as protege de mim. Toda noite, acabado o jantar, passo um pano molhado sobre a bancada da cozinha. Tenho que fazê-lo, por mínimas normas de higiene. Mas toda noite minha mão traz uma tsunami devastadora para a pequeníssimas formigas que nas migalhas do meu alimento vêm buscar o seu.
Vasta e lisa e branca é a minha mesa de trabalho. Agora, no calor, há sempre alguma formiga que a cruza. Tão extensa para ela, tão inóspita e perigosa como um deserto ou uma superfície de gelo. Pergunto-me o que as atrai, aqui onde não há nada para comer, nenhum fruto, nenhuma brotação, nada. Mas o que sei eu das formigas com quem convivo?
Sei agora que se perturbam com a morte. Talvez vejam, no cadáver da outra, seu próprio destino. É tão fácil reconhecer num cão ou num gato o sofrimento pela morte do companheiro, por que não sofreriam igualmente as formigas?
Não perturbar-se com a morte equivale a não reconhece-la. E desconhecer a morte põe em grave risco a vida.
As formigas que se debruçaram sobre o cadáver daquela que esmaguei, terão que dar a notícia no formigueiro. Em qualquer comunidade, uma baixa conta e tem que ser comunicada. Sabemos que as formigas se comunicam. Mas me pergunto como estas que vi relatarão às outras a perda de uma vida. Dos relatos não constará a moldura, elas nem sabem que fui eu que a matei - uma moldura é como uma avalanche e nunca sabemos que mão a empurrou. Mas eu sei.