Bruce Gomlevsky assume atuação e direção na peça "Uma Iliada" - Foto Marina Manda Lembranças A gaménnon, Aquiles e ...
Marina Manda Lembranças
Felizmente, quem teve a idéia não a recusou. A diretora Lisa Peterson e o ator Denis O'Hare condensaram nove anos do cerco de Tróia, e os motivos que o causaram, as rivalidades, os orgulhos feridos e amores que o levaram adiante, além da interferência dos deuses replicando no Olimpo igual rivalidade e orgulhos e amores.
A peça se chama "Uma Ilíada"e fui vê-la na impecável encenação de Bruce Gomlevsky.
Quando criança, a leitura da Ilíada foi tão impactante que, adiante na vida, não a quis retomar, com medo de estragar aquele encantamento primeiro. Eu havia lido uma adaptação feita para crianças maiores, talvez não tenha entendido tudo o que lia, mas nunca mais esqueci a emoção que aquela narrativa me provocava. Durante os últimos anos na Itália, gregos e aqueus povoaram as conversas e as brincadeiras com meu irmão, e lembro claramente os guerreiros de saiote e elmo que ele desenhava nas beiradas dos cadernos. Com a chegada ao Brasil, a força tropical nos distanciou progressivamente dos que haviam sido nosso heróis.
Fui reencontrá-los no palco do teatro Maison de France, ausentes e presentes na voz do aedo que os cantava. O figurino estranho como uma obra de Bispo do Rosário ajuda a cancelar o tempo. E na escuridão, só um fogo de luz sobre o narrador, a história começa a ser contada.
Quantos ecos desperta o nome de Agamennon! Quando fui a Micenas, já casada, atravessei a Porta do Leão como quem entra em casa que conhece ou que sempre desejou conhecer. E no Museu Arqueológico, diante da máscara mortuária de ouro que lhe foi atribuída no passado, mesmo sabendo que não era dele pois a ciência comprovou sua origem anterior, procurei sensibilizada o rosto de general vitorioso.
Não sei exatamente em que momento da vida resolvi correr o risco de amarrotar o passado. Mas o laço ainda não havia sido desfeito, pois foi em uma viagem à Itália que comprei a versão em prosa da Ilíada, como se ler na mesma língua da primeira leitura diminuísse o perigo. Procedi de forma igual, em outra viagem, com a Odisséia. E não as quis em versos, já que em prosa as conhecia.
Pergunto-me agora, quais terão sido os percursos de Peterson e O'Hare. Não se chega a Homero de sopetão. O percurso de Bruce perguntarei a ele da próxima vez que o encontrar. Na noite em que fui ao teatro e esperei que saísse do camarim, ele estava ainda tão tomado pela concentração, pelo esforço daquela enorme viagem, que mal conseguia articular agradecimentos. Não havia voltado de todo, parte dele continuava às portas de Tróia.
Eu também, tomada pelo seu trabalho, pela força da sua emoção, fiquei por alguns dias entre a beira mar grega e as muralhas troianas. E lamentei que meu irmão não estivesse mais aqui, porque certamente eu o chamaria para almoçar e, finda a comida, ficaríamos os dois falando daquela guerra, como o fazíamos no tempo em que parecia tão próxima quanto a outra, real, que se desenrolava lá fora.