Marina Manda Lembranças H á janelas que se abrem repentinas em nossa vida, trazendo uma luz outra, uma outra vista. Agora, por exemp...
Marina Manda Lembranças
Assim foi na semana passada. Precisando fazer uma radiografia para controle dentário - nada mais prosaico - atravessei vários quarteirões de Ipanema rumo ao endereço. Mas cheguei cedo demais e me vi na obrigação de fazer hora. Vaguei por uma loja de departamentos onde tudo me pareceu feio, andei um tanto a esmo, até chegar à conclusão de que melhor seria tomar um café no bar da galeria do consultório. Estava cheio.
Levei meu cappuccino para uma mesinha alta, sentei no tamborete. No outro tamborete da mesma mesa, um jovem lia.
Muito jovem, quase sem barba ainda. A seu lado, junto à xícara agora vazia, mantinha ligado o celular que, volta e meia, consultava. Percebi que não estava viajando em redes sociais, nem trocando mensagens, mas obedecendo a alguma necessidade imposta pela leitura. Teclava, dava uma conferida no livro, olhava a telinha, voltava ao livro. Eu o olhava como se o visse numa biblioteca, com uma pilha de livros de consulta a seu lado.
Não se interessou pela minha chegada, é provável que nem tivesse percebido. Lia atento, movendo por vezes os lábios jovens, não silabando, apenas respirando com mais empenho. Parecia trazer à boca as palavras do livro.
Sou pessoa bem educada, porém sempre que vejo alguém lendo ao meu lado, peco de indiscrição. Estico o olhar ou o pescoço, inclino a cabeça, procuro falsamente alguma coisa na bolsa, só para saber o título do livro e, através dele, localizar o leitor.
Não foi diferente dessa vez. Um tanto difícil, porém, porque o livro estava aberto sobre o tampo da mesa, a tipologia era pequena, e o leitor não abria a guarda para a minha curiosidade. Esperei pacientemente. E afinal chegou o momento em que, procurando um restinho de café no fundo da xícara, ele se distraiu, moveu a mão que segurava o livro, a capa ergueu-se, e eu pude ver o título.
Aquele jovem leitor estava lendo "Fausto", de Goethe.
Um ar mais fresco circulou repentino na galeria. Até então, tudo naquela tarde havia me parecido feio ou medíocre. As vitrines tantas por que eu havia passado não tinham nada de verdadeiramente novo ou surpreendente capaz de atrair meu desejo. Atrás dos vidros desfilava apenas uma longa repetição de produtos sem vivacidade. E naquele fim de tarde cinzento e frio, cinzentas e mal vestidas haviam-me parecido as pessoas que transitavam pelas ruas. Era a esqualidez urbana fazendo seu jogging ao meu lado.
Mas agora, na minha frente havia um jovem que lia "Fausto", um jovem em Ipanema tomado pelo sombrio poema de Goethe. Um rapaz que deslizava do século XVIII ao século XXI só com um espresso, um livro de bolso e um toque do dedo. Reconfirmada estava a possibilidade de ponte entre beleza e cotidiano.