Marina Manda Lembranças N o restaurante Satyricon, em Ipanema, especializado em peixes e por seus peixes premiados, há uma garoupa n...
Agora, leio no jornal que a garoupa Benedetta — é este o seu nome, bem íntimo e humanizado — foi doada pelo restaurante ao AquaRio, que virá incrementar as atrações da cidade. Trocará seu mínimo espaço de 1000 litros envidraçados por cerca de 3,5 milhões de litros. Benedetta sairá do papel de corista da última fila, para o de estrela.
Garoupas são peixes nobres. Como um místico em sua gruta, a garoupa vive em sua toca. E da toca, por mimetismo ou por adoção, adotou a cor rosada, escura, mineral. É uma criatura mansa. Fica ali flutuando suspensa entre pedra e pedra, agitando de leve as barbatanas, encarando o mergulhador que por acaso ou por ganância de caçador mete a cara na entrada do seu lar. Não reage, não se defende, não foge sequer. Está no seu destino ser o São Sebastião flechado do mar.
Vi algumas, quando mergulhava. E ouvi as histórias de muitas. Havia garoupas históricas que, arpoadas mas não mortas, continuavam na mesma toca anos mais tarde, como se à espera do seu primeiro algoz. Arpoar uma garoupa é triunfo para o pescador de mergulho. Não é como o robalo que se caça na luminosidade da espuma, junto à superfície. Para encontrar a garoupa são necessários o mergulho mais fundo, o fôlego — quando mergulhávamos no fôlego e não de garrafa — que permita entrar na toca, a coragem para enfrentar o risco de ficar preso lá dentro, e o olhar que a torne visível apesar do mimetismo.
Mas a notícia do jornal me levou a procurar outro ponto de vista. O de Benedetta.
E vi um animal de toca obrigado a viver exposto entre vidros. Que desamparo há de ter sido o seu. O dia inteiro, e a noite, sem nenhuma proteção, só transparência ao redor, e movimento e gente. Algo como, para uma mulher, estar nua na rodoviária. Um aquário, para quem está dentro dele, não tem sequer vidros, pois o próprio conceito de vidro é alheio aos seres aquáticos. Contida no espaço de mínima areia e falsas pedras, com as borbulhas do oxigênio subindo constantemente, a garoupa Benedetta não tinha como saber que, para além daquele impedimento constatado cada vez que encostava nele, não havia água nenhuma. O mar, quando Benedetta ali vivia, havia sido um continuum. O mundo, para ela, era só mar. Como saber, depois, que um restaurante não é um continuum, que há cozinha e salão, clientes garçons maitres, e um aquário?
Quando Benedetta for para o AquaRio, se sentirá como Marco Polo chegando às terras do Grande Khan. Tudo ali lhe parecerá novo e imenso. Os responsáveis pelo aquário terão feito uma boa imitação do ambiente marinho, mas Benedetta, conhecedora do mar verdadeiro, saberá que aquilo é cenográfico. Como uma atriz da Globo, se moverá entre conchas mortas e ondulantes algas de plástico, fingindo acreditar que é tudo verdadeiro. Será bem melhor do que no aperto devassado do aquário. Porém, nem ali haverá toca que a proteja, porque o propósito é que Benedetta fique bem visível e se deixe fotografar com os visitantes para abrilhantá-los no face.