Marina Manda Lembranças T emer comprou sapatos na China. Não compraria qualquer sapato, o par que ele trouxe de volta há de ser tão ...
Marina Manda Lembranças
Fazem 40 anos amanhã, que morreu do Grande Timoneiro. O Partido imprimiu uma guinada no rumo assim que ele soltou o timão, mas achou mais conveniente não fazer, até hoje, a revisão do seu governo e da sua figura. Ao contrário do que aconteceu com tantos líderes, nenhuma estátua foi derrubada. Ao contrário. Ainda em 2013, em Shenzhen foi inaugurada uma estátua de Mao toda de ouro com detalhes em jade. No rosto, um sorriso paternal.
Houve poucos motivos para sorrir nos anos todos em que o Líder comandou à custa de delações, expurgos, execuções, humilhação e trabalho forçado. Calcula-se hoje um mínimo de 50 milhões de mortos, sendo 45 milhões mortos na grande fome. A população era de 600 milhões.
Não estou dizendo nada que não soubéssemos. Mas, para colocar em seu justo foco o aniversário de amanhã, entrego um fato que ignorava e de que tomei conhecimento através de um artigo de Ursula Gauthier.
Maio 1968, dia 4. Um casal é arrastado pela multidão para uma sessão pública de acusação, humilhação e tortura. É uma cena que se tornou comum desde a proclamação da República popular em 1949, e que poderia ter acontecido em qualquer lugar. O que se seguiu, porém, exige localização: uma aldeia do distrito rural de Wuxuan, provincia de Guangxi.
Acusados de crimes "anti-revolucionários" o homem e a mulher são mortos com tiros na cabeça, sem que isso esgote a fúria da multidão. Os corpos ainda quentes são destroçados por muitas mãos, cozinham-se os pedaços, para serem devorados num "banquete revolucionário de carne humana". Rompeu-se a barreira entre metáfora e realidade.
A notícia do que ocorreu se espalha no distrito de Wuxuan — é de se crer que não se falasse de outra coisa. Ainda assim, as autoridades não reagem. E logo, é a ação que se espalha. As sessões públicas de acusação tornaram-se insuficientes.
Durante dois meses, nas aldeias do Guangxi , os "indesejáveis" serão sacrificados e comidos num ritual macabro. Calcula-se hoje, em 421 o número de vítimas. Quase sempre homens jovens, ou até inteiras famílias. O processo ganha requintes. Depois de exibidos e agredidos no mercado, os "indesejáveis" são mortos a pauladas ou facadas e arrastados até a margem do rio ou de qualquer riacho. Arrancam-se o coração, o fígado e o pênis, partes nobres destinadas aos chefes do comitê revolucionário. A multidão come o resto. O esqueleto é abandonado aos animais.
Pela segunda vez, Mao tornava-se responsável por canibalismo naquela mesma região onde, durante os anos da fome provocada pelo Grande Salto Adiante, famílias chegavam a trocar seus filhos uma com a outra para que os pais não devorassem sua própria descendência.
Os banquetes por devoção a Mao só acabaram porque um pequeno funcionário conseguiu fazer chegar até as autoridades em Pekim relatos do que estava ocorrendo. Em julho daquele mesmo ano, a autoridade militar responsável pela região chegou em Wuxuan ameaçando fuzilar todo o comitê revolucionário se qualquer banquete daquele tipo se repetisse. Não houve mais nenhum.