Marina Manda Lembranças D uas laranjas caídas junto ao meio fio, dois sóis maduros acendendo o cinza circundante, da calçada, da rua, ...
Marina Manda Lembranças
As duas moças entram no restaurante onde estou almoçando. Chegam da praia. Sentam. Um tempo, e o garçom entrega o cardápio. Agora uma das duas lê o cardápio enquanto a outra a olha. O que há nesse olhar, para que eu leia amor? Não é um olhar lascivo, nem um olhar de admiração. Cabeça um pouco inclinada, a moça olha, sem que haja nada de especialmente revelador nesse olhar. Mas há. Pergunto-me o que é, se posse ou intimidade. Se for desejo, não está explícito. Abaixo da mesa, porém, a mão da que está lendo o cardápio pousou na coxa da amante.
Como vemos o que vemos? Ou, como lemos o que vemos?
Meu irmão chegava em minha casa e ia direto para o terraço, olhar o mar. Mergulhador profissional, precursor do surf, lia nas ondas a direção do vento e a limpidez da água. As visitas, quando vêm, também olham o mar, mas só enxergam beleza e paisagem.
Se olhamos de um lado do binóculo vemos tudo aumentado. Se olhamos do outro, temos a impressão de ficar tão pequenos como o mundo que vemos. Os lados do binóculo são uma escolha.
Alguns passam direto, olhando à frente e vendo só o que lhes interessa. O que lhes interessa é aquilo que querem ver, que serve para complementar um momento ou a vida. Um olhar funcional como flecha, apontado, sem desvios, para o alvo. Talvez, o mais indicado para tempos como o nosso em que tudo é foco e objetividade. Aprendemos que o que está fora do foco se torna não apenas impreciso, mas supérfluo. Descartamos automaticamente aquilo que não olhamos. Como as laranjas no meio fio.
O olhar pode ser uma proposta. Ou pode ser um vício.
O dentista vê mais os dentes do que o sorriso, o engenheiro vê mais a ponte do que o rio, a tarefa do vigia é ver o inesperado.
Tenho um amigo - ou o tive, porque em tantos anos nunca mais o encontrei- que após sofrer um grave acidente, passou a andar de cabeça baixa pela rua. Catava moedas. Não sei se andava de cabeça baixa porque buscava moedas, ou se as achava porque andava de cabeça baixa. O fato é que estava sempre com os bolsos pesados, as pessoas deixam cair mais moedas do que imaginamos.
O que ele via, além das moedas? Ou só via as moedas, ignorando a calçada e os pés todos que passavam por ele, com seus sapatos, sandálias, unhas sujas ou pintadas? Nunca perguntei.
Olhando um filme, estamos vendo um espaço de vida através do olhar do diretor, do ponto de vista do fotografo, da escolha do montador. Ainda assim, se vou ao cinema com meu marido ou uma amiga e, na saída, comentamos o filme , fica evidente que o vimos de duas maneiras distintas. Quantos olhares são necessários para a fruição de uma obra de arte?
Você diz que determinada pessoa é bonita, e o seu interlocutor responde que não acha. Não é apenas uma questão de gosto. É uma questão de olhar. Um olha mais para o conjunto, o outro olha mais para os detalhes, um vê a irregularidade no canto da boca, o outro olha para a plenitude do corpo. Os dois estão olhando a mesma pessoa, mas cada um está vendo uma pessoa diferente.
Não só. Temos também a educação do olhar. Cada família, cada grupo social, cada cultura treina o olhar das suas crias para ver de determinado modo, e para atribuir um significado específico àquilo que vê. Não somos donos exclusivos do nosso olhar, o lado do binóculo foi escolhido para nós quando ainda não tínhamos idade para a escolha. Mudar o foco pode ser tarefa da vida toda.