Marina Manda Lembranças N um gesto ousado, Míriam Leitão convidou Nélida Piñon e eu para seu programa de princípio de ano na Globo News....
Marina Manda Lembranças
De economia nada entendo. Nunca fui capaz de acompanhar os caminhos do dinheiro.Tenho sempre a impressão de estar lidando com água na laje, que aparece em um ponto mas goteja em outro. Não era de economia, porém, que Míriam queria falar conosco - ou, se era, acabou mudando o rumo. Falou-se sobretudo de identidade, dessa difícil identidade nossa brasileira.
Alguns pontos ficaram repercutindo na minha cabeça, e os retomo.
Um deles, a revoada de jovens que estão deixando o Brasil rumo a outros países. A história e as condições favoráveis nos acostumaram a receber migrantes, não a migrar. E porque sempre recebemos com preconceito os que aqui chegavam em busca de uma vida melhor, tememos agora sermos pagos com a mesma moeda. Migrar não é fácil. Mas é um belo desafio individual, e uma aposta coletiva que sempre deu bons frutos.
Os jovens que migram são como abelhas polinizadoras, que levam e trazem novos conhecimentos, novos hábitos, novos gostos no paladar, palavras novas na boca. Enriquecem qualquer cultura, ainda que parecendo ameaçadores a princípio. Quando o Japão, ao fim do shogunato , quis abrir-se para o mundo ocidental, mandou jovens às universidade estrangeiras. E o que hoje torna Xangai a cidade mais cosmopolita da China são os estrangeiros que ali vivem e os jovens chineses que foram estudar no exterior e regressaram trazendo um novo olhar.
Não fossem a necessidade aliada à curiosidade humana, jamais nossos antepassados primevos teriam cruzado o estreito de Bering povoando o continente que viria a se chamar América.
Ser estrangeiro em terra alheia não é fundamentalmente ruim. Depende das circunstâncias, depende de como se transita na língua, depende do respeito que impomos em nosso ambiente profissional. Os que migram têm uma dose maior de coragem e determinação, confiam em si mesmos para superar as dificuldades - já que não esperam contar com mais ninguém - e vão para vencer.
Mesmo em nossa própria terra, basta mudarmos de região para sermos estrangeiros, migrantes apesar da língua comum, sofrendo preconceito e nostalgia.
Outro tema de que se falou sob a batuta inteligente e precisa de Míriam, foi a identidade.
É frequente me perguntarem como me sinto, tendo nascido na África, passado a infância na Itália e o resto da vida no Brasil. A diversidade parece ser perturbadora para os outros. Eu não pergunto a ninguém como se sente tendo nascido em uma cidade e passado a vida inteira ali mesmo, talvez no mesmo bairro ou até na mesma casa. Não me faz nenhuma falta esse pertencer a um único lugar, a uma só bandeira. Não é isso que faz a minha identidade. Eu me sinto eu, o que já é bastante trabalhoso - na minha juventude fazíamos análise para chegar a isso.
Uma pessoa plural, no caso esta que vos fala, tem simpatias divididas, como por um samba ou uma cúpula. Tem uma língua de viver e outra de sentir, que se entrecruzam e volta e meia trocam de lugar. Abriga paisagens medievais cobertas de neve e a verde sombra da selva. E essa duplicidade, garanto, pode constituir uma unidade tão una como a de quem se guia por uma só bússola, de agulha sempre apontada para o mesmo lugar.