Marina Manda Lembranças A companhei uma amiga ao médico. Na sala de espera do consultório, além da atendente, só havia um menino. A mãe,...
Marina Manda Lembranças
Sentei ao seu lado, olhei o desenho. Havia algumas figuras algo quadradas, de capacete, como astronautas. Uma delas, no alto de uma espécie de retângulo alto, segurava um arco já com a flecha e a corda estendida.
— Um arqueiro! Que bacana! — eu disse, interessada em estabelecer uma ponte com aquele pequeno desenhista — Gosto muito de arco e flecha, é um esporte bonito.
— Ele está no alto da torre — explicou — É uma guerra.
Desenhou um pouco mais. E continuou — Uma guerra de humanos contra zumbis.
Mostrou com o lápis uma figura caída — Este é um zumbi... e está morto.
Enquanto desenhava ia verbalizando a evolução do seu pensamento — Arco e flecha só é bom quando a gente está no alto e quer acertar a cabeça de quem está em baixo. Que nem esse aqui — e apontou com o lápis uma figura — Se não for do alto, é melhor espada.
— Espada não é que nem arco e flecha, não serve para caçar — disse eu, querendo trazer a conversa para um terreno menos belicoso.
E ele — Mas é boa numa guerra.
Perguntei a idade, 8 anos. Pareceu-me inquietante que, ainda criança, gostasse tanto de violência. Tentei distraí-lo chamando a atenção para suas unhas compridas, falei que precisava cortar. Mas não houve meio de tirá-lo do front que o seduzia. Desenhava mais figuras, apagava o que lhe parecia errado e, sem hesitar, ia acrescentando guerreiros e cadáveres, na composição de uma cena que tinha clara na cabeça. Fez mais uma torre. Tudo era parte, segundo me explicou, de um vídeo game.
E começou a dissertar sobre armas: facas são ótimas quando se quer matar alguém, porque matam de perto e não fazem barulho; ou então, silenciador na arma, que também é muito bom, mas não tanto porque faz um pouco de barulho — e com a boca, aquela boca nova e fresca de criança, fez um pequeno ruído de sucção.
— Este aqui — apontou uma figura ao pé da página — vai atirar a espada nesse do alto. Desenhou um homem no alto de outra torre, com uma espada já cravada em um olho.
— Isso não pode ser — disse eu — não dá para lançar a espada assim, nessa distância e de cima para baixo. Sabe por que?
Olhou para mim, interrogando.
— Porque a empunhadura, a parte onde a gente segura a espada — e apontei no desenho — é muito pesada, e não dá para atirar desse jeito. O que se usa nessa hora é a lança.
Ele não disse nada. Apagou a espada e, cravada do mesmo modo no olho da figura, desenhou algo parecido com uma lança.
Em seguida meteu uma pistola na mão de um, desenhou uma bala chegando na cabeça de outro, e me explicou o tiro, me mostrou mortos e vencedores, me esclareceu a arquitetura das torres, com escadas e portas que não tinha desenhado porque eram do lado que não se via.
E o que ele queria ser quando crescesse?, perguntei.
Guerreiro, policial ou soldado do exército. Ou, então, criador de vídeo games.
Nem tive tempo para dizer que tinha tudo para ser bem sucedido em qualquer dessas profissões. Os parentes já saíam da sala de consulta, ele devolveu o lápis à atendente, agradeceu e se foi.