Marina Manda Lembranças A ntonio está a caminho, sua chegada é esperada a qualquer momento. Talvez já tenha nascido quando esta crônica ...
Marina Manda Lembranças
Penso nele e me ponho na sua situação. Está aquecido, acolchoado, alimentado, protegido. Sabemos que o sentimento de amor lhe chega, assim como lhe chega uma certa luminosidade avermelhada. Flutua, sereno. Mais tarde, quando estiver no ar livre da vida, sem lembrança consciente desse primeiro estágio, buscará um nome para a sensação de bem aventurança que o ventre materno lhe transmitiu e, sejam quais forem sua religião e sua língua, o nomeará paraíso. Só precisará trocar o avermelhado da luminosidade por um leve azul cerúleo. E o gênero de deus.
Em algum momento, porém, sua placidez será interrompida pela primeira ordem, a ordem de sair. Ele ainda não sabe, mas é sua primeira demissão. Não adianta recusar. Quando o chefe quer, a gente roda. A casa ao seu redor se contrai, o que era um ninho se transforma em luva apertada, o cataclismo quer jogá-lo porta afora. Melhor colaborar. E ele colabora, faz a sua parte, seu primeiro grande esforço físico. Constatará, na maioria das vezes, que valeu a pena.
Lá fora está sendo esperado como atleta medalhista em aeroporto. Parentes, flores, corações ao alto. Antonio começa já com aplausos a maratona da vida.
Sempre, olhando o mundo que temos para oferecer aos recém chegados, pensamos que os aguarda um panorama obscuro, uma realidade difícil e uma sobrevivência duvidosa. Mas podemos nos tranquilizar, nunca foi de outra forma. É o olhar dos mais velhos , que compara a realidade presente com aqueles que foram seus propósitos entusiasmados de juventude, seus projetos inovadores e reformistas. A realidade só pode perder.
Antonio não nos cobrará um mundo melhor. Pensará, como pensamos nós no nosso tempo, que as gerações anteriores não saberiam como fazê-lo, não tinham capacidade para isso. Melhorar o mundo sempre foi tarefa e convicção dos últimos a chegar.
O mundo de Antonio será o mais moderno que jamais houve. Para ele. Demorará a perceber a modernidade como uma ilusão que obedece aos ponteiros do relógio, e que sempre existiu, desde muito antes dos ponteiros e do relógio. Meu pai me contava como, menino, via em Roma o homem pontual que vinha acender e apagar os lampiões a gás da rua, e como mais tarde viu a invenção do avião. Eu pensava no salto de modernidade contido nesse relato. Do gás ao avião, e logo ao avião a jato, ao foguete, à viagem à Lua, que ele acompanhou em outro totem da modernidade, a televisão.
Hoje sei que o avião não foi nenhuma surpresa, nenhuma grande descoberta. Vinha sendo esboçado desde Ícaro, desde Leonardo da Vinci, um passo hoje, um passo amanhã, uma asa que dá certo, outra que derrete, até chegarmos ao protótipo. Descoberta avassaladora não foi o celular. Foi o fogo.
Quando os humanos se apropriaram do fogo, só não se sentiram modernos porque não tinham nem a palavra nem o conceito, mas a primeira fogueira assando a primeira carne que não seria comida crua esteve na ponta absoluta da modernidade.
Antonio ainda não nasceu e já está cheio de responsabilidades. Terá que carregar as expectativas dos que o esperam com tanta festa. Só bem adiante descobrirá que carregar as expectativas alheias costuma ser mais fácil que satisfazer as próprias.