Marina Manda Lembranças D esosse o coelho", dizia a receita. A simplicidade do comando encobria a aspereza da tarefa, e ignorava p...
Marina Manda Lembranças
Minha meta auto-imposta era a confecção de uma Terrine de Lapin Aux Pruneaux ou Terrina de Coelho Com Ameixas. Tudo com letras maiúsculas, como maiúscula teria que ser a iguaria para deleite dos meus convidados.
Mas nada, na cozinha e na vida, é tão simples quanto parece. Nem tão maiúsculo. Desossar um coelho é atividade da qual Hitchcok extrairia cenas inesquecíveis, a câmera indo da carne rubra e escorregadia para o cintilar da lâmina em ação, refletida por instantes na pupila do cozinheiro.
Eu estava só, na cozinha. A casa em silêncio, hora de sono alheio. A bancada de trabalho, iluminada. E os fragmentos daquilo que havia sido um coelho, daquilo que havia sido vida, esperando à minha frente na bacia de aço inox, como em uma sala cirúrgica ou em uma morgue.
Para livrar qualquer carne dos ossos é indispensável respeitar a anatomia. Eu teria preferido não identificar as partes, não pensar "carcassa" ou "pata traseira", pensamentos que corporificavam a criatura desmembrada e me traziam à lembrança coelhos vivos, como o branco que minha mãe teve quando eu era criança, ou aqueles cinzentos que correm à beira da pista de pouso no aeroporto de Frankfurt e nos recebem quando vamos à Feira. Mas, como nas aulas de anatomia durante meus estudos de arte, era impossível ignorar o todo recomposto.
Carne e osso têm uma irmandade que só o cozimento desfaz. Quando crus, mantêm-se agarrados até o último fiapo, com a cumplicidade de músculos e tendões. Tive que mourejar com a faca, quase me desculpando pela intromissão que, parecendo feroz, era mansa. Mansa até demais, pois me manteve atada por mais tempo que o necessário àquele fazer que só me trazia abatimento.
E eis que entre meus dedos estava o coração do coelho. É tão miúdo um coração de coelho. E tão bonito. Antes, plantado no meio do peito, aquele rubi macio alimentava a carne, movimentava os fluxos, bombeava ritmado e infalível, pequena máquina de vida conduzindo o coelho adiante, dia após dia, até que.
O coração não é utilizado na terrina de coelho. Alguns usam o fígado. Eu preferi dar sepultura em saco plástico a essas partes nobres. Os eunucos castrados na antiga China, conservavam em um pote seus testículos, para que fossem enterrados junto com o corpo e recompostos no além. Não creio que meu coelho transformado em terrina possa vir a encontrar suas partes no além, e que o pequeno coração volte a bater. Mas um mínimo respeito fazia-se necessário.
Lavei a bacia de inox e no fundo limpo deitei o que restava do coelho. Os ossos pus numa panela para obter o caldo exigido na receita. Já nada mais era reconhecível. Moí as outras carnes e os temperos, juntei o ovo e o conhaque. O cheiro agora já era de comida. Salguei.
Quase ritualisticamente untei a forma. Deitei nela as carnes moídas e os filés inteiros de coelho. Depois, com a mão afundei um vão, bem no meio, e coloquei a carne escura das ameixas, que ficasse ali como um coração, transmitindo doçura e sabor. Sepultei tudo debaixo de mais carne. Tampei a forma selando com farinha e água, como se sela um túmulo. E pus no forno.