Marina Manda Lembranças S enti algo macio movendo-se junto ao meu pé. Estendi a mão, era o gato. O gato do passageiro no assento diante ...
Marina Manda Lembranças
Estávamos a bordo de um avião.
O dono do gato, soube quando lhe dirigi a palavra comentando a presença inusitada, era um chef italiano. Ia para algum país africano cujo nome não guardei. Disse que viaja muito, sempre acompanhado pelo gato que tem chip instalado, documentos, e uma paciência infinita para longas travessias aéreas. " É meu companheiro e minha paixão", afirmou, "e é muito bem educado".
De fato. Ao encostar no meu pé estava de coleira, apenas para dar uma esticadinha nas patas. Não avançou na bandeja de comida, não miou, fez xixi polidamente sobre um jornal, no banheiro. Só comeria sua ração chegando ao aeroporto.
A senhora sentada ao lado do chef e do gato, animou-se e entrou na conversa. Ela também era italiana. Em algum momento daquele vôo noturno, quando descansávamos em pé no corredor, me contou que durante alguns anos fez trabalho voluntário na África, em países cujos nomes não guardei. Trabalhava com crianças. Depois, quando deixou de ir, sofria "mal d'África", que é como os italianos do tempo da colonização definiam uma espécie de banzo ou de saudade intensa daquelas culturas.
Ainda no aeroporto, enquanto esperava o vôo que me levaria a conhecer o chef, o gato, e a italiana designer, uma moça havia-se aproximado de mim para pedir informação sobre o embarque. Era jovem, magra e valente. Ia para Luxemburgo, teria ainda que fazer uma conexão. Vinha de Campinas. E era a sua primeira viagem de avião, seu primeiro vôo internacional.
Talvez estivesse nervosa, talvez gostasse de conversar. Me contou que há meses procurava trabalho sem encontrar. É contadora. Fez várias entrevistas, estava certa de ter se saído bem em todas, e nada, nenhum chamado posterior. Então a irmã, que há anos mora em Luxemburgo, lhe disse:"Vem prá cá". Mandou a passagem, vai hospedá-la em sua casa, vai ajudá-la a encontrar pequenos serviços, a fazer amizades. Cinco meses, era o tempo que aquela jovem se dava para viver uma experiência completamente nova, abrir uma porta inesperada, dar um largo salto para a frente.
Me despedi dela no aeroporto de Lisboa. Desejei-lhe sorte. Ela disse que me procuraria na internet e daria notícias.
Três vidas me foram narradas brevemente em uma única viagem. E seus amores: um gato, um marido, quatro filhos, uma irmã. Três vidas em movimento, três vidas voltadas para a frente.
Havia cerca de 300 passageiros naquele avião. Olhei os corpos derreados no sono ou iluminados frouxamente pela telinha da televisão, e pensei que cada uma daquelas pessoas tinha riquezas semelhantes a contar. Não existem vidas insignificantes. Cada vida é um universo estrelar em que outras vidas orbitam com seus temores e seus amores. E para cada vida, todo dia, do passado ou do futuro, vale muitos anos luz.