Marina Manda Lembranças C hama-se "A casa" o reality recém estreado na Record sob o comando de Marcos Mion. Mas o nome não se ...
Marina Manda Lembranças
100 pessoas escolhidas por critérios dos quais o público não é informado disputam um quarto com quatro camas, dois banheiros, uma sala e uma varanda. Disputam igualmente os quatro cobertores, as quatro toalhas, e quantidades de comida e água suficientes apenas para quatro bocas. A finalidade, suponho, é despertar aquela violência primeira que a civilização mal e mal encobre.
Não chega a ser uma idéia nova. Nova, se tanto, é a sua aplicação.
Em 1958, o cientista americano John Calhoun, estudando a violência, realizou uma experiência com ratos brancos da Noruega. Após analisar detalhadamente seus hábitos, alterou suas condições de vida, colocando muitos indivíduos no espaço destinado a poucos, de modo a estressar a pequena população que habitava as gaiolas do seu laboratório.
Ao resultado chamou:"esgoto comportamental".
Os ratos antes pacíficos, que cortejavam as fêmeas na época do cio seguindo-as até o ninho, passaram a persegui-las em grupo, como estupradores coletivos. A relação sexual antes rápida, para dar conta da reprodução, tornou-se demorada e sádica. Os machos mais violentos atacavam sexualmente não só as fêmeas, como outros machos. Com isso, os machos mais fracos e amedrontados só saíam do ninho à noite, enquanto os atacantes dormiam. As fêmeas começaram a morrer por distúrbios no útero, no ovário e nas trompas de Falópio. Algumas comiam os filhotes recém paridos. O nível de mortalidade aumentou grandemente.
Impossível não estabelecer uma ligação com a musculatura exuberante de parte dos participantes do reality, denunciada por Patrícia Cogut em sua coluna. A força física impõe respeito ou, pelo menos, medo.
O antropólogo americano Edward Hall , em seu livro "A dimensão oculta", de 1966, também estudou o compartilhamento do espaço. Mas de outra maneira, mais ligada à percepção do que à reação. O território, disse ele, é um prolongamento do organismo.
Deteve-se sobre a diversidade cultural — quando viajei ao Japão, por exemplo, surpreendeu-me o fato de que em uma grande festa religiosa em que a multidão visitava um templo, ninguém, mas ninguém mesmo, me esbarrasse. Coisa bem diferente do que aconteceria no Brasil ou no México —. E estabeleceu 4 distâncias possíveis na partilha do espaço: íntima, pessoal, social e pública.
Todas elas estão pulverizadas no espaço "constrictor" da suposta "casa". Nenhuma possibilidade de espaços íntimos quando 100 dividem o que está programado para quatro. A começar pelos banheiros onde, ainda segundo relato de Patrícia, o papel higiênico logo acabou, item assaz apropriado em uma situação de esgoto comportamental.
Para ter 100 participantes, muitos mais se candidataram. E entende-se o espírito sacrificial — estar entre esses 100 não há de ser prazer algum — quando se pensa na visibilidade garantida e na possibilidade de conquistar a mídia e suas benesses.
O que, entretanto, mereceria um estudo de ambos John Calhoun e Edward Hall é a disponibilidade dos espectadores. Que lucro libidinal obtêm as pessoas que buscam na tela da televisão essa feroz disputa de gladiadores? Não é suficiente o noticiário cotidiano de assaltos, assassinatos, degolas, superlotação dos campos e dos botes de refugiados? Não basta, em matéria de esgoto comportamental, o que todo dia nos é entregue pelas investigações em curso e o que está se passando em Brasília?