Marina Manda Lembranças P or acaso — que proveitosos podem ser os acasos — folheando uma revista em que não tenho especial interesse, ab...
Marina Manda Lembranças
Há quanto tempo não pensava nela nem a via citada! E no entanto, que ofendida fiquei naquela tarde em Paris, no Centre Pompidou — sim, tenho quase certeza de que foi naquele museu, mas pode ter sido em outro — em que, na sala dela procurei sua ficha, aquelas grandes placas plastificadas que trazem dados sobre o artista e a obra exposta, e não a encontrei. Perguntei ao vigia, podia ter sido extraviada. Ele, que nada sabia, foi perguntar a um superior. Voltou com ar de suficiência, informando-me que ficha dela não tinha, tinha a do marido, Robert Delaunay. Protestei com veemência.
Sempre achei o trabalho de Sonia mais interessante que o de Robert. O que mais me encanta é a expansão que imprimiu à sua arte, levando-a para dentro do cotidiano através de roupas, tecidos, design. Começou com a colcha do berço do filho, que sendo um parchwork era uma obra. E foi certamente influenciada pela estada de quase dois anos em Vila do Conde, Portugal, onde ela e Robert se refugiaram no começo da I Guerra Mundial. Numa vila portuguesa dos anos 15 o artesanato fazia parte da vida, renda, costura, tricô, cerâmica eram feitos a portas abertas, ainda não eram coisas de se comprar em loja de suvenir.
Sonia fundiu tela e tecido. Pintou verdadeiros quadros nas roupas que criou, e pintou mulheres vestidas com suas próprias roupas, como no quadro Três Mulheres, que está no museu Thyssen —Bornemisza. Há fotos deliciosas do seu ateliê, em que mulheres e telas retomam os mesmos temas e se confundem. Reafirmando sua modernidade e o dinamismo do seu trabalho, botou suas estampas também em automóveis.
Curiosamente, a mesma modernidade da qual Sonia se sentia parte e agente acabou nos afastando da convivência com a arte que seus produtos estabeleciam. Diante do computador estou vestindo uma camisa costurada por desconhecidos na Indonésia, uma suéter manufaturada em Portugal e meias vindas da China. A saia fui eu mesma que fiz, é o que me salva.
Talvez por isso admiro a Delaunay. Porque, como ela, gosto da marca da mão naquilo que uso, gosto da peça exclusiva, que melhor dialoga com meu corpo, com minha vida.
Estou, nesses dias, traduzindo uma conferência da escritora argentina Maria Teresa Andruetto, minha queridíssima amiga. Uma conferência que a propósito de literatura fala de arte, da relação entre arte e mercado, arte e artista, e do triângulo formado pela arte, o artista, e o seu desejo — ou do quadrilátero arte/artista/desejo/mercado — e o que leio à medida que vou traduzindo me leva a pensar que quanto mais o mercado amplia seu poder, mais nos afasta da arte.
O mercado vai ao encontro dos desejos. Para isso realiza pesquisas, para isso contrata agências. O alvo do mercado é o desejo que leva à compra. Mas a arte vai em direção contrária. Como diz Andruetto, busca o inesperado, a ruptura, o dissenso. O artista não trabalha com prato feito.
Sonia quis botar arte no cotidiano. Hoje, no cotidiano, temos plástico e produtos massificados. Os que precisam de arte têm que buscá-la. Só por acaso ela vem ao nosso encontro numa página de revista.