Marina Manda Lembranças N o início da semana a Operação Brabo prendeu 79 pessoas , entre as quais 28 funcionários do porto de Santos, ...
Marina Manda Lembranças
Vimos no Jornal Nacional a imagem do barquinho se aproximando do navio fundeado, a corda descendo - ou baixando- com a carga de droga. Cena idêntica à que eu presenciei um dia, ou melhor dito, uma noite.
Falo de tempos idos, aparentemente distantes mas historicamente recentes, final da década de 50. Fugindo de um noivado que ameaçava transformar-se num péssimo casamento, viajava eu com meu pai Manfredo - que ainda não havia se tornado ator- num cargueiro do Lloyd Brasileiro. Íamos rumo à Itália em viagem que não tinha data certa para acabar, pois o navio pararia em muitos portos para carga e descarga, sem maiores compromissos de data ou hora.
E eis que, começando o pinga-pinga, estávamos fundeados à noite na baía de Salvador esperando para atracar no porto ao amanhecer.
Verão, aquele calor baiano, mais quente ainda no camarote espaçoso mas ventilado apenas pelas escotilhas. Meu pai e eu acordados, cada um no seu beliche. E, de repente, um assovio. Alto, bem alto, como se de sinalização. Logo seguido por outro mais breve, e um longo. Apitos conversavam.
Sem atinar com o risco, meu pai e eu levantamos, pusemos uma roupa e subimos ao convés para ver o que estava acontecendo. Por sorte, a escuridão era funda.
E na escuridão vimos um escaler se aproximando do costado. Os remos levantavam brilhos da superfície, o mais era breu. Um cabo foi baixado do deque inferior ou de alguma escotilha. Houve um remexer lá embaixo, um ondear do escaler, um trocar de informações em voz baixa. Agora não lembro se a carga foi baixada ou se foi transferida do escaler para o navio. A segunda opção parece mais lógica, já que nosso destino era a Europa.
O cabo foi recolhido, o escaler afastou-se rumo ao porto prateando água com os remos. Durante a breve operação não havíamos visto nenhum vulto agindo no navio. A calma que só havia sido interrompida pelos silvados foi retomada e envolta em silêncio. Manfredo e eu voltamos para o camarote, de pés leves como gatos, tratando de não fazer ruído ao fechar a porta. E durante um bom tempo a cena que havíamos presenciado barrou a chegada do sono.
Quem, a bordo daquele navio da empresa estatal, podia ignorar o que se passava, se até dois otários como nós haviam sido atraídos pelo diálogo dos silvos? Estávamos fundeados distante da cidade, não havia vento, mar em mansidão, como desconhecer o ruído inequívoco dos remos, o bater do escaler contra o casco, as vozes? O comandante certamente sabia, e o imediato. Num navio não há segredos, são muitos olhos, muitos ouvidos, e bocas falastronas. A tripulação toda sabia.
Houve mais um incidente dessa mesma espécie naquela viagem. Ou talvez tenha sido na volta, em outro cargueiro da mesma companhia. Certamente foi na volta. Porque quando a grande estrutura de madeira que segundo os dizeres carimbados protegia uma "máquina agrícola" se rompeu por um descuido com a carga, todos viram que o conteúdo não era uma máquina agrícola - a não ser que uma Ferrari novíssima e vermelha estivesse destinada ao trabalho no campo. Uma Ferrari não seria contrabandeada do Brasil para a Itália. Sim, com certeza foi na volta.