Marina Manda Lembranças E stávamos reunidos no bar daquele hotel elegante em Buenos Aires, sete ou oito companheiros de trabalho brinda...
Marina Manda Lembranças
Eles entraram juntos, e juntos sentaram no sofá pequeno, ao fundo. Verdade é que não reparei neles, de início. Era apenas um casal num hotel, nada de inesperado.
O que me chamou a atenção — e já algum tempo havia passado — foi o espumante nas taças erguidas. Baixei o olhar sobre a mesinha, a garrafa estava devidamente metida no balde de gelo. Garrafa inteira de espumante naquele fim de tarde ainda claro parecia inusitado.
Pouco depois, ela levantou-se e saiu do bar deixando a taça sobre a mesinha e a bolsa no sofá, provavelmente ia ao banheiro. Era jovem e bonita. Roliça na calça preta colante, na malha preta decotada. Cabelão. Botinha de salto bem alto.
Olhei para ele que bebericava à espera. Era muito mais velho, um velho alto, magro e enrugado. Terno escuro de bom corte, belos sapatos. Tudo indicava dinheiro. Reparei na aliança.
Retomei a conversa com meus amigos. Ela voltou. Uma parte da minha atenção, pequena mas suficiente, passou a acompanhar o casal.
Quase a contragosto a bela aceitava o aproximar-se, mais e mais cobiçoso, do seu acompanhante. A situação já bastante óbvia tornou-se evidente com o início dos beijos. Ele a beijava, ela mais consentia do que retribuía. Não usava aliança.
Olhando o casal tão díspar lembrei-me de outro casal, em outro hotel, tantos anos antes. Estava eu sentada com Affonso naquele saguão em São Paulo, quando o dono da grande empresa em que eu trabalhava adentrou portanto um avião embalado em seda branca de grandes bolas pretas. Vinham de braço dado, ele fazendo um esforço de verticalidade porque era baixinho, enquanto ela, alteada por saltos vertiginosos, o sobrepassava. Também aquele homem era um velho, apesar do cabelo gomalinado cintilar como aza de graúna, e era rico, muito rico. Também a moça que avançava com ele ondulando babados era jovem, bem jovem.
A única diferença na situação entre os dois casais era o ar altaneiramente profissional da loura de bolas, comparado ao ar quase enojado com que a moça roliça se deixava beijar no sofá. Mas era muita diferença.
Não tornaram a encher as taças, a urgência dele parecia mais real que o simbólico espumante. Levantaram-se e foram embora, enquanto eu me perguntava se completariam o programa naquele mesmo hotel, subindo para o quarto.
A cena havia sido muito pesada para mim, embora semi discreta. E passados alguns minutos, quis diluir o mal estar fazendo aos meus colegas um aceno qualquer sobre o que havia presenciado. Bastou falar, para que ficasse evidente que todos eles tinham acompanhado as evoluções do casal. Mesmo os que, no grupo sentado em círculo, estavam de costas para o sofá.
Cada um tinha um comentário a fazer. Cada um havia pousado o olhar sobre os incômodos avanços do fauno, sem que o ritmo da conversa comum fosse alterado. Cada um havia analisado a cena a seu modo entrecruzando o plano pessoal — oculto — e o coletivo — exposto. Agora, tudo se tornava coletivo. O olhar, como as moscas, tem asas. E nem sempre acompanhamos seu vôo.