Marina Manda Lembranças H oje à noite recebo um amigo querido para jantar. Preparei para ele carpaccio de peixe defumado, com saladinha ...
Marina Manda Lembranças
Para justificar minha humilhação, transcrevo um texto do Satyricon (não o restaurante, a obra literária), escrito no séc 1 d.C. , em que Petronio descreve um único prato do banquete oferecido por Trimalcion, escravo liberto, enriquecido e vaidoso.
" Durante a gustatio nos trouxeram uma bandeja sobre a qual havia um cesto com uma galinha de madeira que batia as asas com força, como fazem as galinhas quando estão no choco. Logo, vieram dois escravos e, acompanhados de música, distribuíram aos convidados ovos de pavão que haviam encontrado procurando na palha. Trimalcion virou-se para a cena e disse: "meus amigos, botei essa galinha para chocar ovos de pavão. E, por Hercules, receio que eles tenham ficado demasiado tempo debaixo dela. Vejamos, assim mesmo, se ainda são comíveis". Deram-nos colheres... e quebramos os ovos que haviam sido feitos de massa açucarada e leve. Por pouco, eu não joguei fora o meu, porque havia-me parecido ver um embrião. Mas ouvi um velho frequentador daquelas festas dizendo " Deve haver, aí dentro, algo bem gostoso". Mergulhei a mão na casca e encontrei lá dentro um papa-figo bem gordo, envolto em gema de ovo apimentada."
Trimalcion é personagem inventada por Petronio, o que nos autoriza a pensar que a ceia e os ovos de pavão nunca existiram. O que o autor pretendia — e pode ter-se inspirado na realidade — era mostrar o transbordar de luxo exibido pelo novo rico deslumbrado, em sua ascensão na sociedade romana.
Mas o luxo parece não ser nunca excessivo.
Não o foi no banquete oferecido em 1454 pelo duque de Cl`eves ao duque de Borgonha, cuja descrição nos chegou através de Mathieu d'Escouchy. Vale dizer que nos banquetes dos príncipes consumiam-se 50 bois, e até 1000 ovos, e que os pratos sucediam-se aos pratos, entremeados por apresentações artísticas ou musicais.
"Pela porta onde os outros pratos tinham vindo, depois que o patê havia sido servido quatro vezes, entrou um cervo extaordinariamente grande e bonito, todo branco, com grandes chifres todos de ouro, coberto por uma rica capa de seda vermelha. Trazia, montado no dorso, um jovem, da idade de 12 anos, vestido com um traje curto de veludo carmesim, com um pequeno chapéu preto na cabeça, meias pretas e belos sapatos. Essa criança se segurava com as duas mãos nos chifres do cervo e, ao entrar na sala, começou a cantar a parte aguda de uma canção , em voz clara e alta, enquanto o cervo fazia a segunda voz, sem que houvesse ninguém mais, além da criança e do artifício do cervo. Foi dito o nome da canção que eles cantavam: "Nunca vi coisa igual". Cantando essa canção, os dois deram uma volta ao redor da mesa e foram embora. "
Não terei nem ovos de pavão, nem cervos brancos de chifres de ouro para oferecer ao meu amigo. Mas minha intenção não é deslumbrá-lo. Quero apenas oferecer-lhe amizade, que melhor se alimenta com bom vinho e com a comida preparada com afeto.