Marina Manda Lembranças E ra a semana do Natal. Um amigo querido — cujo nome omito por discrição — havia feito recentemente uma interv...
Marina Manda Lembranças
Atendeu uma voz de mulher.
— O Dr. Fulano faleceu — disse, assim que perguntei por ele. E sem dar meia trava ou espaço para perguntas, acrescentou — Não quero falar nisso agora.
Desligamos.
Eu, estarrecida. Meu amigo era homem jovem e saudável, praticava esportes, tinha personal. E era médico. Havia colocado três stents, é verdade, mas falara comigo depois disso e parecia bem.
À noite, custei a adormecer. Devia muito a esse amigo, sempre solícito, sempre generoso. Lamentava agora não ter sido suficientemente amorosa no agradecimento. E o revia sentado à minha mesa poucas semanas antes, tão vital, tão loquaz elogiando o risoto .
Nos dias seguintes aventamos hipóteses, com meu marido. Um entupimento, um infarto súbito, uma infecção hospitalar. Morte tão repentina de médico tão criterioso não parecia fácil de aceitar.
Insisti com Affonso, que ligasse novamente para a casa. Falaria com a viúva, que ele conhecia, daria um abraço, um apoio. Não podíamos deixar nossa relação acabar com aquele anúncio lúgubre e seco.
Ligamos.
Nosso amigo atendeu, voz risonha de sempre. Estava tão vivo quanto sempre estivera. Completando a plena recuperação.
Depois disso, tenho me interrogado sobre o movente da mulher que atendeu o primeiro telefonema.
O telefone toca, você atende, percebe que a chamada se endereça a outra pessoa, e responde que aquela pessoa morreu.
Podia ser a mãe dele. Podia ser um filho. Podia ser, como foi, um amigo querido. Podia ser a urgência de um paciente enfermo. Você diz que o Dr. morreu, e desliga.
Com o que você fica? Não quero nem falar em lucro, o sentimento me basta. Como fica a pessoa depois de um gesto desses? E justamente na semana do Natal, quando tudo convoca à fraternidade e ao afeto.
Pensemos que foi uma brincadeira. A pessoa desliga e rola de rir — eventualmente em companhia —imaginando as lágrimas, o desespero, a contaminação nas vias sociais, notícia rolando, perguntas sobre qual a causa, onde o velório, quando o enterro. Mas é engraçado isso?
Pensemos que foi fruto de uma irritação. A mulher estava ocupada, o telefone tocou, era engano, o segundo naquele dia, ela matou o indivíduo procurado porque queria ferir quem o procurou. O revide, porém, superou brutalmente a causa involuntária.
Pensemos, então, que foi maldade em estado puro. O prazer que a mulher extraiu de sua resposta, não veio de uma brincadeira nem de uma vingança, mas do mal em si.
Vivemos cercados de maldade, um tipo de maldade gerada por interesses em outros lucros. O poder, a ganância, o dinheiro, a dominação foram desde sempre infindáveis fontes de maldade. Parecem estar no DNA da humanidade e convivemos com isso em nosso cotidiano.
Mais difícil é lidar com o mal como puro prazer. Para este não existe limite, não se esgota quando atinge o que queria, porque o prazer alimenta a necessidade de mais prazer, e o sofrimento de um gera o gozo do outro.
O mal puro serpenteia. A mulher do telefone deu a sua resposta porque sabia-se oculta. A sombra é onde a serpente melhor se aninha. E temos visto, nos últimos tempos, o adensar-se de sombras no horizonte. É nossa visão limitada. Pois, em qualquer tempo, houve sombras se adensando em algum ponto daquela linha que separa terra e céu.