Estado de Minas U ma mulher gorda, humilde, de idade, estĂĄ parada na mĂnima rampa da calçada que lhe permitirĂĄ descer. A mĂŁo procura apo...
Estado de Minas
Uma mulher jovem, cabelĂŁo solto, vinda do lado oposto, atravessa a rua. Empurra um carrinho de bebĂȘ.
HĂĄ ĂĄgua escura estagnada diante de parte de rampa.
Agora a jovem pĂĄra diante da senhora, pede que saia da frente, quer passar. A senhora diz que a outra espere, ela quer descer. HĂĄ um breve bate-boca irritado. A senhora diz em voz mais alta que Ă© doente. A jovem, numa sacudida de cabelo, responde no mesmo volume, “a culpa nĂŁo Ă© minha!”
E a jovem passa, obrigando a senhora a se espremer contra a grade. Quando cruza a meu lado me diz cheia de indignação: “ Ela queria que eu passasse com o meu carrinho naquela lama!”
Pequenas cenas urbanas nos introduzem, por momentos, em outras vidas, outros universos.
Fila do supermercado. A caixa, ao mesmo tempo em que vai passando os produtos frente ao leitor digital, conversa com a companheira que os recolhe e os organiza nas caixas de entrega.
— Estou aperreada!.....( suspiro farto). Adivinha quem foi preso ontem?
— Roberval ?! ( uso nome postiço, pequena discrição que elas nĂŁo tiveram).
— E quem foi que teve que ir na polĂcia pagar cinco mil pra soltar ele?
— O pai.
— Que pai!!.... eu! ( pausa cheia de ecos daquele eu!). Quando separei dele eu falei, deixa essa vida, cara....( pausa). Cheguei lĂĄ, estava com os braços feridos ( levanta as mĂŁos e as junta Ă sua frente como se algemadas)... das algemas.
Quando parei diante dessa caixa me pareceu uma mocinha como tantas outras um pouco gorda, maquilada, correntinha com pingente, cabelo preso como manda a norma do supermercado. Agora a olho e a vejo indo socorrer o ex marido bandido, arrumando cinco mil que para ela sĂŁo tantos, envolvida numa vida que serĂĄ sempre pesada.
Sento, no aviĂŁo. Um homem senta ao meu lado. Mergulho em leitura, saiba que nĂŁo quero conversar. A viagem tem inĂcio, a proteção do livro de nada me adianta, ele Ă© loquaz. Começa pelas bordas, que mora na regiĂŁo dos Lagos, que nĂŁo Ă© brasileiro mas vive aqui hĂĄ muitos anos, que aprendeu o jeitinho brasileiro, que sabe como trabalhar. E, equivocado quanto ao meu silĂȘncio que interpreta como aquiescĂȘncia, avança na conversa. Agora começa a me contar como, entre as gentes com que negocia, se lava dinheiro, como entra sujo e sai limpo, filtrado por empreendimentos, compras de imĂłveis, negĂłcios. “Em BĂșzios, por exemplo – diz ele – muitos empreendedores argentinos...” e vai explicando o sistema de limpeza. Tento puxar o freio de mĂŁo dizendo que isso nĂŁo me interessa, nĂŁo entendo nada disso. “Eu tambĂ©m nĂŁo me interessava – atalha ele- quando vim para o Brasil. Mas no Brasil nĂŁo dĂĄ para fazer as coisas na legalidade. Eu tentei, Ă© impossĂvel”. Dito isso, passa a me explicar, com fartura de detalhes, como funciona o contrabando de carros de luxo importados, do qual ele faz parte. Que vĂȘm da Europa de navio e desembarcam nĂŁo sei aonde e sĂŁo levados de caminhĂŁo para nĂŁo sei que paĂs vizinho e atravessam a fronteira e..... Eu, boquiaberta com a imprudĂȘncia e a falta de pudor daquele desconhecido.
Gostamos de crer que algemas, crimes, prepotĂȘncia estĂŁo distantes da nossa vida. AtĂ© que, Ă s vezes, encostam.