Estado de Minas N o vagão restaurante do trem que ia de Hamburgo para Bruxelas, meu marido, nosso amigo organista Jean, e eu, preenchíamo...
Estado de Minas
Imediatamente, quatro animais ergueram a cabeça no pensamento de todos nós. Um cachorro, um gato, um burro e um galo desprezados por seus donos se puseram no caminho de Bremen, mais uma vez decididos a abraçar a carreira musical.
Nosso amigo acessou o conto em seu iPad, e começou a ler em voz alta. E ali estávamos, uma brasileira-italiana nascida na Eritréia, um brasileiro, um belga, e uma alemã – sim, ela deixou o livro de lado - todos viajantes, migrando para o universo distante e tão próximo do conto que havia habitado a infância de todos nós.
Agora me pergunto que versão terá sido aquela, colhida ao acaso na internet e lida por Jean. Certamente a menos truculenta. E a menos saborosa. Podados, quarados, adaptados e edulcorados, os contos maravilhosos foram sendo despidos da sua força e de boa parte da sua maravilha, em troca de obviedade e de conselhos morais.
Mas renascem. Na nova edição completa e original que acaba de ser lançada pela Cosac Naify, os contos recolhidos pelos irmãos Grimm vêm com cabeças devidamente decepadas, madrastas perversas lançadas ao fogo, a avó devorada pelo lobo sem caçador à vista, maldade e bondade em sua plenitude. E está em minha mesa, recém chegado de Portugal graças à generosidade da minha amiga Maria Teresa Meireles, brilhante estudiosa de folclore, um livro que além de outros contos similares contém 19 versões de A Gata Borralheira.
A primeira, chinesa, é a mais antiga de que se tem conhecimento. Escrita no século IX, não faz nenhuma referência – ao contrário do que se imagina- aos pés femininos encolhidos e aos seus sapatinhos de cetim bordado. O sapatinho que vai permitir o reconhecimento da bela não é de cristal, é de ouro. De ouro é também o da versão sueca, em que a madrasta manda cortar fora o calcanhar e os dedos do pé da filha, para que o sapatinho lhe caiba e ela seja escolhida pelo príncipe.
Nem ouro nem cristal, para a Cinderela brasileira. Nessa versão, que não consta do livro português, nem de um outro livro, americano, que lista 135 variantes, o sapato é apenas branco. Mas no meio do sertão poeirento, um sapato branco pode ser mais precioso que um sapato de ouro e mais raro que um sapato de cristal. Ali, nem coroa nem príncipe, o mocinho veste farda igualmente cobiçada, é militar. E Cinderela não vai ao baile da corte, que não há nem corte, quanto mais baile. Vai à missa.
Deve ser poder de divulgação da Fada Madrinha, esse multiplicar-se de versões tempo adentro, mundo afora. Não se pense porém em fada cor de rosa, flutuante, varinha de condão na mão. Na Córsega, como na Bulgária, a criatura encantada que protege a Gata Borralheira é uma vaca, na França um cordeiro, na China um peixe, no Brasil um boi, animais totêmicos que serão sacrificados dando sua carne em pasto, e continuarão atuantes através da presença dos seus ossos.
Um boi morto não é glamuroso como uma fada loura. Mas as raízes do boi são fundas, enquanto a fada, sem peso ou densidade, flutua.