Marina Manda Lembranças O cinema estava vazio. Melhor, tive o filme só para mim que bem o merecia. Três contos somente, dos 50 escr...
Marina Manda Lembranças
Não devemos levar a sério o subtítulo da obra de Basile " overo lo Trattenemiento de Peccerille" ( "ou seja, o entretenimento dos pequeninos"). Como as grandes coletâneas de contos maravilhosos que a antecederam, as 49 narrativas englobadas em um conto-moldura destinam-se a qualquer idade. Nem Matteo Garrone fez um filme para crianças, ou mesmo para adolescentes. Ao contrário da série de adaptações de contos de fadas com que Hollywood vem nos castigando, não há luta do bem contra o mal, nenhum super herói, nada de enfrentamentos bélicos ou explosões, nenhuma obviedade. Distante está o ritmo de filme de aventura. Tudo é pausado, surpreendente e, como uma voz de narrador, a beleza torna-se elemento da história.
Garrone escolheu e fundiu três dos contos, "A corça encantada", "A pulga", e "A velha esfolada". Propositadamente deixou de lado as mais famosas. Poucos sabem, mas Cinderela - ou A Gata Borralheira- atribuída a Perrault ( e hoje desapropriada por Disney), faz parte da coletânea de Basile sob o título "La gatta Cenerentola ". E também são de Basile "Branca de neve", "O gato de botas", e "A bela adormecida".
Como Perrault, Basile também não é o criador dos contos, que colheu do folclore e escreveu em dialeto napolitano. Como Perrault, foi muito admirado pelos irmãos Grimm que o consideravam o pai dos contos de fadas. Graças e eles, a tradução para o alemão antecedeu em quase um século a tradução do napolitano para o italiano, logo transformando a obra em um clássico.
Falando em tradução, há alguns abundantes anos, meu amigo Sebastião Lacerda, editor da Nova Fronteira, me pediu para fazer a tradução de "Lo cunto de li cunti". Confesso que a tentação foi grande, teria sido um enfrentamento delicioso. Mas depois de muito pensar, recusei. Não estava me furtando ao trabalho, que seria intenso, mas sim evitando o risco de contaminação. Sendo eu mesma autora de contos de fadas, temia que depois de meses mergulhada no universo maravilhoso de Basile, algum fiapo de enredo ficasse emaranhado na minha memória levando-me a cometer, inconscientemente, algo próximo do plágio.
Por isso escrevi na primeira linha que eu bem merecia ver o filme como se tivesse sido feito só para mim, ou só para mim estivesse sendo contado como se contam os contos de fadas à beira da cama, no limiar do sono.
Garrone tratou os contos com a densidade que eles merecem. Passando por cima da linguagem de Basile transbordante e barroca, frequentemente desbocada, criou com suas imagens um discurso nobre, elegante e sombrio. O drama está sempre à espreita, e a realização dos desejos cobra um preço que pode ser muito caro.
Tudo parece verdadeiro nessas narrativas visuais entretecidas de irrealidade. Os castelos são sólidos, os abismos são profundos, e a escuridão é tão viva e pastosa como aquela pintada por Caravaggio. Há majestade nos reis, há peso nas caudas dos vestidos das damas e leveza nos seus véus. E há drama e medo e sacrifício na busca, tão humana, daquilo que mais se quer.