Marina Manda Lembranças E u vinha voltando do correio, e os vi. Os dois agachados no meio da praça, debruçados sobre uma poça grande mas...
Marina Manda Lembranças
Ela levantou a cabeça, percebeu que eu a olhava, e me sorriu, cúmplice. Antes que abaixasse de novo a cabeça, li em seus lábios, que a ditavam para o filho, a palavra "lagartixa." "Lagartixa", repetiu o menino em voz alta, e procurou mais intensamente na água turva.
Naquela mesma praça houve um filhote de jacaré no lago, quando havia lago. Mas para o menino, uma lagartixa era de igual importância. Debruçado à beira da poça, estava à beira de um mar ou lago imenso, estava à beira da água onde a vida nasce.
Não era vida que eu trazia no coração. Era luto manso por um amigo muito, muito querido. Naquela mesma manhã havia sido informada da morte de Marcelo Andrade.
Fomos companheiros de trabalho e de estrada durante mais de 30 anos, e de risadas, de confidências, de esforços, de êxitos. Era um adolescente quando o conheci em Viçosa, ousado diretor de teatro encenando meu livro "E por falar em amor". Lecionava matemática. E da matemática partiu para criar dois projetos culturais que, iniciados em Minas, semearam leitura e conhecimento por onde passaram. Dois projetos modificadores.
Um deles era o "Encontro Marcado", que mais tarde se chamou "Grandes Escritores". O outro era "Arteducação".
Amigo íntimo de Fernando Sabino, de quem havia encenado com enorme sucesso "O grande mentecapto", Marcelo pediu-lhe licença para usar o título. O formato era aparentemente simples: levar escritores importantes a cidades do interior para falar de seus livros, de seu processo criativo, de leitura. As salas, em teatros ou escolas, ficavam lotadas. A participação do público era vibrante, ultrapassávamos sempre a hora devida. A cultura pouco se lembra do interior, mas ali os nomes exponenciais da literatura se punham à disposição.
Fazíamos giros de várias cidades de cada vez, uma por dia. Houve períodos em que ia um escritor só, com Marcelo. Outros em que iam dois, com ele sempre presente. Houve também um tempo de doação de um acervo de livros para a biblioteca local. E quanta conversa no carro ou na van, quanto entusiasmo pelo que estávamos fazendo!
"Arteducação" é um projeto de que participei menos, mas que sempre me comoveu. Destinado a oferecer cultura a jovens em risco, estruturava-se juntamente com as prefeituras locais — que ofereciam o espaço — as secretarias sociais locais — que escolhiam participantes e cursos, e faziam o acompanhamento — o patrocinador, que desde o início foi a Tim, não sei se ainda é — que fornecia uniformes, material, lanches, e salário dos monitores — , tudo capitaneado pela equipe de Marcelo. Lembro dos cursos de música e arte, de hip hop e judô, de teatro, de balé, de arte digital, de jazz, de percussão. E os de costura para as mães. Já não sei quantos milhares de jovens e crianças o projeto atendeu, mas sei que muitos escaparam do risco que corriam.
Nem soube que Marcelo estava doente. Ele pediu para que eu só fosse avisada depois da operação, não queria me preocupar. E o "depois" que ele esperava praticamente não aconteceu, tudo foi muito rápido.
Imagino que o "Arteducação" prossiga, tocado por Virginia Bittencourt, há tempos sua brilhante diretora executiva. Mas o time do Grandes Escritores desembarca agora definitivamente do trem que acaba de perder a sua locomotiva.