Marina Manda Lembranças S teven Berkoff é aquele ator inglês que por aqui nos acostumamos a ver em papéis de vilão. Foi vilão de Rambo, ...
Marina Manda Lembranças
Fui vê-la no fim de semana, no Tablado, interpretação de Marcelo Serrado. Haveria depois do espetáculo um debate com Geraldinho Carneiro, tradutor da peça. Ia ao encontro desses dois amigos, Marcelo e Geraldinho, encontrei mais uma, Maria Clara Machado.
Engana-se quem pensa que Maria Clara morreu faz tantos anos. Ela continua morando no Tablado, sua casa mais amada. Fui muito, com minhas filhas, assistir a suas peças. Vi todas, a maioria mais de uma vez. E desenvolvi com Maria Clara uma vida que só pertencia a nove pessoas — por vezes foram mais, por vezes, menos — o grupo de análise que duas vezes por semana, durante anos, se reuniu sob a batuta de Carlos Byington. É muita intimidade. E a voz, a fala, as inseguranças e a firmeza, os projetos, o trabalho e o sorriso de Maria Clara vieram ao meu encontro assim que entrei no Tablado.
Como a teria destrinchado com ela, exponho as considerações que a peça de Steven Berkoff me provocou.
Ele, que acha um privilégio interpretar vilões, escolheu os melhores deles, mas rebaixou sua vilania. Nas falas do ator que, além de interpretar cenas de cada um, conta e comenta a personagem e o enredo em que Shakespeare a envolveu, o vilão perde o furor das unhas e tem os dentes limados a poder de ironia. O público adora, porque é divertido ver o poderoso destronado, e porque nunca antes viu alguém diminuir personagens do Bardo.
Mas na segunda gargalhada, me surpreendi pensando que o vilão só é necessário quando na posse de toda a sua perversidade.
Quem é o vilão? O vilão é a corporificação do Mal. E o mal é tudo o que nos ameaça: a Morte em primeiro lugar, e o acidente, o ataque, a perda, o abandono, a doença. O mal é o que espreita atrás da esquina pronto a nos saltar em cima, sem que nos seja dado saber que esquina o esconde. Assim oculto, torna-se ainda mais amedrontador. E para aliviar nossa carga, a arte deu-lhe corpo e tornou-o visível através dos vilões.
Acompanhamos suas maldades com prazer, pois ocupado com outros, o vilão não nos ataca. E até torcemos por ele, escuridão indispensável para dar destaque à luz do bem querer.
Steven Berkoff ainda surpreende o público ao fim, listando Hamlet entre os vilões. E o define como "serial killer" por ter morto ou provocado a morte de várias personagens - embora o príncipe só tenha matado Polônio e Claudio.
Mas Hamlet se encaixa melhor em outro perfil caro à modernidade, o do "herói vingador". Como o Conde de Monte Cristo ou Batman, ele não mata pelo prazer de matar, nem para obter qualquer lucro, tudo o que trama destina-se somente a vingar a morte do pai, assassinato pelo irmão Claudio, agora marido da sua mãe. E na mitologia da modernidade, o "herói vingador" tem licença para matar.
Uma última observação: Marcelo Serrado está ótimo no papel, alternando justas doses de ironia e de drama.