Marina Manda Lembranças R ecebo, por engano, um vídeo com 66 fotos da vida na Rússia entre 1900 e 1965. Bendito engano. Me debruço so...
Marina Manda Lembranças
A primeira foto é da família Romanov. O czar Nicolau e a czarina Alexandra estão rodeados por seus cinco filhos. A serenidade perpassa os rostos quase houvesse promessa de sorriso. No entanto, a data é de 1914.
Pelas roupas leves e claras sabemos que é verão. Em junho daquele ano o arquiduque Franz Ferdinand foi assassinado, colocando o mundo em alerta. O clima estava longe de ser sereno. Em julho a Rússia declarou mobilização geral, em agosto recebeu da Alemanha a declaração de guerra. Quatro anos mais tarde, também no verão, a família seria trucidada em Ekaterinburg.
Detenho-me no conjunto de fotos das combatentes russas da Segunda Guerra Mundial. Heroínas da aviação, da artilharia antitanques, atiradoras de elite- uma delas contabilizando 309 mortes. Todas estão gloriosamente sorridentes nas fotos, o peito cheio de medalhas.
Mas quem leu o livro de Svetlana Alexiévich, “A guerra não tem rosto de mulher” sabe que a realidade não tinha sorrisos. Nada fora previsto para elas, não havia uniformes do seu tamanho, nem botas, muito menos absorventes. Muito jovens, adolescentes quase, tinham que brigar para serem enviadas à linha de frente. Diz uma das entrevistadas: ”Com dezenove anos me entregaram a Medalha ao Valor. Com dezenove anos meu cabelo ficou todo branco. Com dezenove anos, no último combate, uma bala me atravessou ambos os pulmões e outra bala me passou entre duas vértebras. Me paralizou as pernas...E me consideraram morta...Quando voltei para casa, minha irmã me mostrou o aviso da minha morte... havia sido até enterrada...”. E outra:” Os alemães não faziam prisioneiras as mulheres militares. As fuzilavam. Sempre conservávamos duas munições para nós, duas, para o caso de a primeira falhar”.
Se o front havia sido ruim, a volta foi pior. Foram recebidas com desconfiança. As mulheres achavam que elas haviam se alistado para dormir com todos os homens, os homens as temiam e ao que elas haviam feito. “No princípio nos escondíamos. Não confessávamos a ninguém que havíamos combatido, não mostrávamos nossas condecorações. Os homens usavam as suas, as mulheres não.”
O terceiro lote de fotos que chamou minha atenção é de soldados russos ocupando Berlim. Tão gloriosos todos, tão agitando bandeiras e armas, olhando do alto de prédios ou estátuas a cidade que haviam ajudado a destruir.
Mas eu li no livro “Uma mulher em Berlim”, o relato feminino do que foi aquela ocupação. A autora anônima, provavelmente uma jornalista, escreveu seus apontamentos entre 20 de abril e 22 de junho de 1945. Depois de ter sido estuprada quatro vezes por homens diferentes e decidir que ”Essas coisas não podem estar acontecendo ao meu ‘eu’. E me libero delas tirando-o de mim”, estabeleceu uma relação com um tenente russo, como forma de proteger-se dos demais. Os invasores buscavam relógios de pulso e mulheres. As moças passavam seus dias e noites escondidas em porões, sótãos e até em armários, mas havia horas em que os homens saíam à caça e derrubavam portas.
As fotos mentem para mim porque fixam os momentos melhores. Mas momentos não são isolados, mesmo se felizes. Dependem dos momentos anteriores e se prolongam nos momentos seguintes. Momento algum é estanque. Estanque é somente sua apresentação nas imagens, para deleite e consumo alheio.