Marina Manda Lembranças N ão lembro mais em que ano entrevistei longamente Regina Duarte. Sei que ainda trabalhava na revista Nova , p...
Marina Manda Lembranças
Lembro que falou muito do pai, da disciplina com que foi criada e do senso de responsabilidade. Me disse, e foi o que mais me impressionou ou o que mais recordo, que quando começava a gravar uma novela era como se entrasse para o convento. Só se dedicava a isso. Saía de manhã para o estúdio, gravava, voltava para casa, tomava banho, lavava a cabeça, comia alguma coisa, e começava a estudar o texto para as gravações do dia seguinte. Não se ocupava da casa, não fazia compras, não saía na noite. Como uma freira em clausura, só rezava frente ao altar do trabalho.
Desde essa declaração, nas raras vezes em que penso nela a vejo de robe branco felpudo, turbante de toalha na cabeça, estudando o texto.
Em algum momento, aproximando-se o fim da série Malu Mulher, fui convidada a escrever um episódio. Não à toa. Eu era editora de comportamento da Nova, uma revista criada pela editora Abril para ser o contraponto de Claudia, mirando a nova mulher que estava aparecendo na sociedade brasileira - ou seja, justamente o tipo de jovem mulher que Maria Lucia Fonseca, a Malu encarnava. E acabava de lançar um livro intitulado “A Nova Mulher”.
O episódio que escrevi chamava-se “Lutando em guerra e paz” e narrava um entrevero entre Malu e sua filha Elisa, com pacificação final. Eu também tinha uma filha adolescente e conhecia bem esses enfrentamentos. Escrevi um outro episódio, que foi comprado pela Globo e nunca gravado, não sei se porque “batia“ com outro ou se porque o seriado chegou ao fim.
Desde o começo, Malu Mulher foi considerado feminista. Não eram tempos fáceis para esses assuntos. O preconceito contra as mulheres e contra as feministas era escancarado e muitas , querendo livrar a cara e manter-se em cima do muro, protegiam-se com a frase “não sou feminista, sou feminina”.
Regina era um símbolo. Não havia evento de mulheres ou mesa redonda ou entrevista sobre o tema para a qual não fosse convidada. Agora a vejo dizer no seu depoimento ao Bial que “nunca se declarou feminista”. E não me lembro dela ter afirmado isso naquele tempo. Disse mais a Bial, que sempre achou que “não era por aí”, que “tinha que negociar mais”.
Se não era por aí, por onde era? E o que havia mais a negociar, se correndo grande risco havíamos começado as negociações no século dezoito?
Regina também declarou ter passado pessoalmente “por tudo aquilo” que vivia a cada capítulo. E eu me pergunto como passar por tudo aquilo, como decorar cada frase sem se convencer de que a hora era aquela? Como encarnar Malu, num turning point das mulheres brasileiras , sem vestir a pele da personagem? Regina reconhece a importância do seriado, sabe que foi um libelo feminista exibido em muitos países, e mesmo assim não se convenceu.
Eu fui libertária desde criancinha porque nunca aceitei que coisas me fossem proibidas só pelo fato de ser menina. Mas só me fiz feminista quando comecei a me informar. Depois da publicação de “A Nova Mulher” dei, a pedido da revista, uma série de conferências com o mesmo título, e havia sempre multidões de mulheres presentes, as novas mulheres brasileiras que reivindicavam plenos direitos, que queriam trabalhar, ganhar o próprio dinheiro e serem donas do próprio destino. As mesmas mulheres emergentes a quem Malu Mulher era dirigido.