Marina Manda Lembranças A poda selvagem realizada nos contos de fadas da coleção “Conta pra Mim”, produção da Secretaria de Alfabetização,...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
João e Maria foram sim, ao contrário do que consta na nova coleção, levados ao bosque pelos pais que, em plena miséria, não tinham como alimentá-los. Era prática recorrente na Idade Média em períodos de fome. No Brasil nunca tivemos Idade Média, mas sempre tivemos fome e sempre tivemos crianças rondando nos bosques urbanos. Para essas crianças pode ser muito proveitoso saber que João e Maria estiveram na mesma situação, e conseguiram achar uma saída. Bem mais do que ler que uma boa mãe lhes ensinou o truque das pedras, para que pudessem colher flores.
Não li todos os contos de fadas da coleção “Conta pra Mim”, e me pergunto se a bruxa má, com sua casa de doces e sua disposição de comer as crianças foi eliminada. Seria uma perda, porque é personagem simbólica que ajuda os pequenos a administrar, no imaginário, o desejo canibal de tantos adultos.
As 130 crianças sequestradas desapareceram do conto do flautista de Hamelin, não por sedução da flauta e, sobretudo, não por vingança, mas por corte ideológico. O conto, sem as crianças, torna-se apenas um conto de ratos. Crianças desaparecem diariamente no Brasil, atraídas por dinheiro, por promessas ou até por comida. A versão original aconselha os pequenos a não ouvir essas falsas músicas.
Vi na coleção, que Chapeuzinho Vermelho, sempre morena, foi oxigenada pela ilustradora, e que o Lobo Mau, não é morto pelo caçador. Apesar de ter se demonstrado tão esperto ao longo da narrativa, tropeça de repente, cai no rio e se afoga. É a segunda poda! Na história original não havia caçador nenhum, o Lobo comia a Avô e Chapeuzinho, sem que houvesse volta. Mas as crianças brasileiras às quais a coleção é endereçada, nunca ouviram um tiro, nunca tiveram que ir para o banheiro e se deitar no chão durante um tiroteio, nunca viram traficantes ou policiais armados, e precisam ser protegidas da imagem do caçador e da sua violência.
Quem empunhou serrote e tesouras não é, evidentemente, especialista em literatura infantil. Fosse, teria lido o trabalho de Freud sobre contos de fadas, o de Jung e o das escolas de ambos. Saberia que a linguagem simbólica tem alto poder estruturante, que os símbolos não precisam ser decodificados, simplesmente deslizam para o inconsciente adaptando-se às necessidades do pequeno leitor e ajudando a formular perguntas ou a fornecer respostas.
Quem orquestrou este insulto a narrativas milenares, desconhece que elas se mantêm vivas através do tempo e da geografia porque tem infinitas portas, permitindo que cada leitor – ou ouvinte – abra a sua e se enriqueça.
Sherazade, assim como os dez jovens nobres do “Decameron”, de Boccaccio, contavam histórias para vencer a morte. Deveriam ter servido de exemplo neste período em que estamos frente a frente com ela. Mas não. As narrativas do “Conta pra Mim”, dessangradas, despidas de seus símbolos, não combatem coisa alguma e conta-las perdeu qualquer valor.
Quando o moralismo inventa suas próprias histórias, revela-se rasteiro e óbvio. Então recorre a histórias bem plantadas no imaginário universal, e as adapta. Mas ao adaptá-las as desconstrói. E ao abrir a pata só encontra um punhado de moscas.