Marina Manda Lembranças D entro de alguns dias, ou assim espero sem levar em conta a desorganização que impera no país, acabará meu confinam...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Lembro que ainda no dia 12 de março tinha um encontro marcado na Livraria da Travessa, a de Ipanema minha favorita, com o historiador Clovis Bulcão que não conhecia. Ele havia escrito uma biografia de Henrique Lage e eu acabava de escrever um livro sobre a vida doméstica no Parque Lage, construído por Henrique para a esposa, Gabriella Besanzoni Lage, minha tia avó, e razão da minha vinda para o Brasil. Telefonei para ele, e marcamos. Que prazeroso foi aquele encontro! Brindamos com vinho branco gelado a nossos livros de temas tão irmãos, e nos comportamos como cúmplices ao redor da mesma pesquisa.
Não tinha como saber que aquela seria a última vez em 2020 que iria à Travessa. Soube agora que o livro do Clovis vai ser lançado este mês, e espero que ele me mande meu exemplar autografado. Meu livro aguarda, na editora, tempos mais propícios.
Dia 17 ainda fui ao supermercado. Dia 18 me tranquei.
Quando era criança, na Itália, estive de quarentena toda vez que tive as doenças infecciosas da infância, para as quais ainda não existia vacina. E tive todas! Ao fim da quarentena, vinha a saúde púbica desinfetar o ambiente.
Mas eram só 40 dias, vividos com meu irmão mais como matança de aula do que como castigo. Agora, quando a agulha da vacina afundar no meu braço, serão exatos 12 meses que não ponho o nariz além da porta.
Tenho amigos, jovens ou da minha mesma idade que vivem a pandemia de forma mais light. Uma delas veio ontem me visitar, ficamos no terraço olhando o por do sol até escurecer, do mar vinha um ventinho fresco que penetrava nossas máscaras, ela prometeu voltar trazendo sorvete ou vinho gelado. Outra sai constantemente para andar ou para tomar cerveja sentada na calçada frente à casa. Minha filha, que teve covid no inicio da gravidez, leva o filho para passear na rua e em pracinhas. Uma foi a Búzios levando duas amigas, ou levada por duas amigas. Enfim, circulam com prudência, mantendo o distanciamento social e o álcool gel ao alcance, vão a restaurantes, passam fim de semana em pousadas ou casas de campo, dão voltas de carro, arejam. Levam a vida quase normalmente.
Outros radicalizam, em frontal desrespeito aos demais, conforme ensinamentos do clã Bolsonaro. Faz algumas semanas chegou-me um ruído de música. Debrucei-me no terraço e vi que numa cobertura bem abaixo da minha rolava uma festa, tipo “depois da praia”. Do alto, contei umas 20 pessoas ao ar livre, mas podia haver mais dentro da habitação. Ninguém de máscara, todos de calção ou biquíni, distanciamento social detonado, luzes piscantes, copos na mão, e dança. Era para ser divertido. Pareceu-me um insulto.
Não estou me queixando. De todas as janelas vejo o mar, e toda manhã rego plantas. Por profissão, meu escritório e minhas estantes me bastam. Tenho lido muito, ensaios e literatura misturados, um livro disponível sobre cada mesa, substituindo a escrita, já que as portas da poesia e do maravilhoso estão trancadas pelo acúmulo de tantas mortes. E já tenho compromisso para um evento online, na Semana do Livro e da Leitura promovido em abril pela prefeitura de Jardinópolis, que tem como tema “Ler é libertar-se”.
Ler é uma vacina contra o desconhecimento, um antidoto contra as fake-news, uma picada salvadora contra o autoritarismo.
Pena que, no nosso país, tantos não saibam disso. E que governos seguidos pouco façam para enraizar esta verdade.