Marina Manda Lembranças A conteceu como vou contar. Parece fato pequeno, não é. Meio dia, eu de pé na esquina da praça esperando a...
Marina Manda Lembranças
Meio dia, eu de pé na esquina da praça esperando a mudança de sinal. A mesma praça de Ipanema de que falei na semana passada. Hoje também dia de feira (não é um dado pessoal, faz parte). Vinha do lado oposto um grupo de jovens, seis, talvez, uma moça com eles. Teriam cerca de 15 ou 16 anos. Jeito de quem vem da praia ou para a praia vai, bermudão lá embaixo, peito nu, descalços. Atravessaram antes mesmo que o sinal abrisse. Um deles, na retaguarda.
Ponhamos agora na cena uma bicicleta velha, presa com corrente no poste. E no quidom da bicicleta, um pano escuro torcido e amarrado.
Eu ainda estou em pé ali ao lado. O garoto passa, vê o pano, talvez pense ser uma camiseta. Diminui a passada o quanto basta para conferir, apalpa o pano, sacode. Não é camiseta. O jovem desiste, dá dois passos à frente.
Não é camiseta, mas está disponível. O garotão volta. Examina o produto. E começa a desamarrá-lo.
— Isso tem dono! — digo alto para ele. — Não é seu!
O jovem gatuno mal me olha.
— Pára com isso! — insisto.
As pessoas passam indiferentes. Dia de feira, a esquina tem muito movimento.
O gatuno conseguiu desfazer o nó, que estava apertado.
— Isso é roubo ! — exclamo. E repito — É roubo!
O ladrãozinho me olha mal encarado, mas está mais interessado no exame daquilo que conseguiu. É uma canga.
Ele me dirige algum insulto que intuo mas não ouço, os colegas o estão chamando, ele sai correndo agitando o seu troféu.
A cena que aqui parece lenta, durou poucos minutos.
Reparo que havia uma jovem mulher ao meu lado, também esperando para atravessar a rua.
— Também, o cara deu mole! — comenta agora em tom superior — Larga a canga assim, solta na bicicleta....
Esse tom, vindo de quem tudo viu e nada disse, me toca os nervos.
— Que dizer que as pessoas têm que se comportar como se todo cidadão fosse ladrão?! — respondo — Sinto muito, não concordo.
— A senhora ainda foi se meter... tava se arriscando.
— Prefiro me arriscar, que assistir calada. De tanta gente que passou, ninguém fez nada.
O sinal abriu, avançamos ainda próximas rumo ao outro lado. Ela aponta para a cabine da polícia.
— E bem na cara da polícia — diz, já se afastando.
Um fato de nada, que não é de nada e que me trava a garganta.
Homens não usam canga. O ladrãozinho roubou, portanto, um objeto que não pode usar. Certamente não espera vender uma canga velha, escura e usada. Roubou, pois, uma coisa que não lhe dará dinheiro. Então, roubou por que? Porque roubar tornou-se um hábito nacional. Porque a canga "estava dando mole" como disse a mulher. Porque era alguma coisa — não importa o que — desassistida, sem proteção de vigilante ou de arame farpado, sem cerca eletrificada, sem cão de guarda feroz, sem alarme. Alguma coisa que se podia tomar de alguém, sem risco. O jovem ladrão testou antes. Tocou a canga na passagem, pronto a correr se fosse necessário. Ainda deu dois passos, nenhuma voz de dono fez-se ouvir, ele voltou. Só o dono reagiria, e por impulso irrefreável. Os outros estão sendo diariamente doutrinados para não ver e não ouvir, para não correr riscos, porque o risco é inútil.
Em dia de semana, aquele rapaz não estava trabalhando, não estava estudando. Estava dando os primeiros passos na sua futura profissão.