Marina Manda Lembranças L evam-me até o hotel pequeno onde ficarei hospedada na cidade grande. Uma graça o hotel. Hotel boutique que p...
Marina Manda Lembranças
E na manhã seguinte, depois de uma noite bem dormida porque tenho viajado muito e ando meio cansada, acordo com a sensação de dever cumprido e bem cumprido. Na hora do almoço irei ao aeroporto, posso preguiçar alguns momentos mais na grande cama branca. E assim estou, preguiçando de alma leve, quando o canto do meu olho externo percebe alguma coisa que se move. Que vigilantes sabem ser os cantos dos olhos, mesmo quando não lhes damos ordens! E ele me adverte: atenção, acorda!! Viro a cabeça. Lá está ela, fedorenta como um camelo, cascuda como um rinoceronte, silenciosa e invasiva como uma serpente, a barata!
Bastou a sua presença para a cama deixar de ser branca. Onde até então me sentia tranquila e protegida, estou agora em campo minado e sob ameaça. A imundície física e simbólica alonga suas patas na minha direção.
Não tenho especial aversão a baratas, medo nenhum já que não mordem. Mas nojo, todos têm. O quarto, já disse, é minúsculo, não mais de três pés ao redor da cama, e só. Não temos, ela e eu, para onde fugir. Tento abafá-la jogando-lhe em cima o duplo peso de lençol e cobertor. Some entre as dobras superpostas. Espero, aliviada, que tenha entendido o recado. Alívio breve, pois ei-la que ressurge cheia de disposição. Salto da cama agora conspurcada e me refugio junto à parede. A exiguidade do quarto aumenta a dimensão da intrusa. Ainda assim, quero dar-lhe possibilidade de sobrevivência, não me considero autorizada a matar bicho algum, a não ser mosquito. Mas embora eu lhe transmita em voz alta minhas intenções, não parece me levar a sério.
A legítima defesa é um direito legalmente reconhecido. A barata ameaça entrar na minha bolsa – que por falta de lugar melhor deixei no chão junto à cama. Percorre a alça da pasta de trabalho que terei, mais tarde, que passar pelo ombro, não se esconde, não se protege, entra no pé de chinelo que não está no meu pé, me provoca. É demais!
O cadáver escuro e agora aplastado jaz sobre o tapetinho felpudo.
Mas o quarto, o quarto todo e não apenas a cama, deixou de ser habitável. Embora já vestida com a roupa com que viajarei, roupa que andou de avião e taxi, e portanto não está limpa, me dá asco sentar na mesma cama onde, ignara, dormi.
Desço para tomar café, achando, com repugnância , que tudo neste hotel foi em algum momento atravessado por patas de baratas. E quando volto ao quarto para escovar os dentes e buscar o computador em que agora, na salinha silenciosa, escrevo, o cadáver desapareceu.
Atrás da cortina do banheiro, uma outra barata espreita. Desta vez, a recebo sem surpresa e até com alguma compreensão. Veio, talvez, para recolher os restos mortais da colega. Que sabemos nós dos sentimentos das baratas, e dos seus rituais? A proteção cascuda pode abrigar um sofrimento de perda, como o de um gato que vi na internet tentando reviver , com suas patas e miados, outro gatinho morto. Não somos, como fomos treinados para crer, os detentores dos sentimentos, embora o sejamos da pretensão. E precisei vir tão longe, para que a brevíssima convivência com duas baratas empenhadas num esforço de sobrevivência me lembrasse disso e me recolocasse em meu justo lugar.